Key West, Flórida - Como qualquer visitante da casa de Ernest Hemingway sabe, esta propriedade possui mais do que a máquina de escrever do escritor, sua cama de ferro branco e o mictório usado que ele levou para casa do bar Sloppy Joe.
O lugar está repleto de gatos de seis dedos - chamados de gatos Hemingway - que, há gerações, se espreguiçam no sofá de Hemingway, deitam em seus travesseiros e fazem caretas para os visitantes. Os guias turísticos falam incansavelmente sobre os gatos ciganos descendentes de Snowball, um gato branco de pelo fofo que foi dado de presente aos Hemingway. Segundo as lendas do mar, os gatos com polidactilia (que têm um dedo a mais) trazem uma maré de sorte, o que certamente explica a boa sorte dos gatos e os paparicos que recebem.
Mas parece que mesmo o charme de 45 famosos gatos de seis dedos provou não ter eficácia contra um inimigo implacável: o órgão regulador.
A tentativa do museu de manter os gatos fora do alcance do Ministério da Agricultura, que já dura nove anos, terminou em fracasso em dezembro. O Tribunal Federal de Recursos da 11ª Comarca dos Estados Unidos decidiu que a agência tem o poder de regulamentar os gatos conforme a lei de proteção aos animais, que se aplica a animais de zoológicos e circos viajantes, por que o museu os usa em publicidade, vende mercadorias relacionadas aos gatos na internet e os deixa à vista dos turistas pagantes.
Em outras palavras, os gatos são itens de exposição vivos que respiram e que precisam de uma licença federal.
- A parte mais ridícula de todas é que, se eles estivessem realmente preocupados com o bem-estar dos gatos, isso jamais seria um problema - disse Michael A Marowski, sobrinho-neto da mulher que comprou a casa Hemingway em 1961, o ano em que Hemingway morreu, e a reabriu como museu em 1964.
- Esses gatos são muito bem cuidados - disse ele, - mas porque existe um livro e esse livro nos diz que animais para exibição precisam ser mantidos dessa forma, nós estamos tendo que passar por isso.
Marowski está ponderando se apela à Suprema Corte.
Na visão dele, o episódio dos gatos de Hemingway não é mais do que a regulamentação federal passando por cima das inúmeras leis locais e estaduais que regulamentam os animais domésticos. Os gatos, a maioria com nomes de pessoas famosas, há muito tempo recebem visitas semanais de um veterinário, e a grande maioria é castrada.
Os gatos comem bem, são livres para andar pelos móveis de Hemingway (já que também é a casa deles), e têm até mesmo seu próprio cemitério perto do jardim, onde Frank Sinatra está enterrado perto de Zsa Zsa Gabor e onde Marilyn Monroe está a um olhar sensual de Bette Davis (é Key West afinal de contas).
Na verdade, quando o Ministério da Agricultura mandou o PETA (organização não governamental de proteção aos animais) averiguar a situação em 2005, o investigador do grupo concluiu: - O que eu achei aqui foi um monte de gatos gordos, relaxados e felizes. Deus salve os gatos.
O tribunal de apelação concordou que "o museu sempre cuidou, alimentou e proporcionou cuidados veterinários semanais aos gatos Hemingway". Em sua sentença, os três juízes até colocaram uma dose de compreensão.
- Apreciamos a situação praticamente única do museu, e simpatizamos com sua frustração - dizia a sentença. - No entanto, não é papel da corte avaliar a sabedoria dos órgãos reguladores federais.
Hoje, o museu não é afetado pela legislação. Isso porque ele chegou a um acordo com o Ministério em 2008. que concedeu ao museu uma licença para exibição que se estende até a cerca, acrescentou alguns comedouros especiais, feitos para afogar os insetos e melhorou os abrigos dos gatos.
Mas Marowski disse que isso não significa que a batalha tenha acabado. O museu, segundo ele, estará sujeito a quaisquer mudanças no regulamento, qualquer uma das quais possa acabar com o museu ou com os gatos.
- Agora nós estamos a mercê da agência - disse sua advogada, Cara Higgins.
David Sacks, porta-voz do Ministério da Agricultura, disse que a agência estava simplesmente seguindo a lei, que também abrange mascotes de times, por exemplo, e que é feita para assegurar cuidados diários apropriados. Crueldade é apenas o começo, disse ele. A agência deve procurar coisas como pinturas com tintas tóxicas que estejam descascando ou infestação de roedores.
- Se um animal está protegido pela lei, nós não podemos fazer distinções - disse ele. - Nós os regulamos.
A disputa começou em 2003, depois que uma amante de gatos e voluntária do museu prestou queixa ao ministério depois que um gato agressivo saiu da propriedade para perambular pela rua. A agência concluiu que o museu precisava seguir a regulamentação federal para a exibição de animais. Mas o museu argumentou dizendo que os gatos são nascidos e criados na propriedade, que eles raramente vagueiam pelas ruas e que é o legado de Hemingway - e não os gatos - que serve como atração principal.
- Se tivéssemos um zoológico para gatos com seis dedos, não teríamos tantos - disse Higgins.
Mas a agência discordou, e mandou um especialista em comportamento animal para contabilizar os gatos e analisar a situação. Agentes disfarçados foram enviados em 2006 para observarem os gatos e fotografar sorrateiramente seus movimentos. Uma foto mostra um gato cinza sentado na calçada. Ela tem a seguinte legenda: "Foto de um gato com seis dedos tirada em um bar/restaurante no final da Whalton Lane com a Duval. Pode ou não ser um gato do Museu e Casa Hemingway."
- É bobagem; virou loucura - Higgins disse. - É aí que está indo o dinheiro dos impostos. Os agentes vêm aqui para tirar férias, ir a bares e tirarem fotos de gatos.
A certa altura, a agência recomendou um vigia noturno para os gatos. Mais tarde, ameaçou confiscá-los. Um juiz federal no caso até conduziu uma pesquisa de campo no museu; policiais federais interditaram uma passagem para uso exclusivo dos engravatados. A papelada legal desse vai e vem encheu seis caixas.
Os rumores não afetaram a vida dos gatos Hemingway (e paira a dúvida sobre se Hemingway tinha mesmo um gato de seis dedos. Mas essa é outra história).
Em uma tarde recente, um Lionel Barrymore peludo mordiscou a ração, pulou em uma pedra e caminhou para longe. Hairy Truman estava languidamente espalhado na mesa do pátio, tomando sol e se esfregando. E Francis, batizado assim em homenagem a um furacão de 2004 que atingiu Key West, se acomodou confortavelmente no travesseiro de Hemingway enquanto os visitantes faziam "Oh" e "Ah".
Alguns se divertiam tanto com os gatos Hemingway quanto com a história de Hemingway. - Hemingway faz a gente vir aqui da primeira vez - disse Elizabeth Zettler, 28 anos, que vem todo ano de Jacksonville, Flórida, enquanto dava zoom com sua câmera em Francis. - Mas são os gatos que fazem a gente voltar.
The New York Times
Nos EUA, gatos do Museu Hemingway atraem turistas e uma batalha judicial
Ministério da Agricultura dos Estados Unidos quer regulamentar conforme a lei de proteção aos animais os felinos que moram na antiga casa do escritor
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