Com adiamentos de shows e festivais por conta da enchente, ou eventuais insatisfações, há quem tenha recorrido ao reembolso de ingresso no Rio Grande do Sul. No entanto, a Lei Nº 14.917, sancionada em julho, trouxe algumas flexibilizações de prazos e alterações nesse processo que envolve os produtores dos espetáculos e os espectadores. A norma dispõe sobre medidas emergenciais destinadas aos setores de turismo e de cultura do Estado.
Zero Hora consultou especialistas em direito do consumidor para esclarecer questões sobre o reembolso de ingresso com foco em shows. Confira a seguir.
Comprei meu ingresso na internet e quero desistir do show. Tenho direito a reembolso?
Há o “Direito de Arrependimento”, como observa a advogada e professora do curso de Direito da Unisinos Isabel Porto Borjes. Em compras online, o cliente pode desistir do contrato no prazo de sete dias a contar da sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço.
Desisti de ir ao show, mas se passaram sete dias desde que comprei online. Posso solicitar reembolso?
Não. Isso não vai dar direito ao cliente ser reembolsado, já que é uma responsabilidade dele não ir ao show, frisa Isabel.
Comprei meu ingresso em um ponto físico (bilheteria ou loja), mas, em seguida, me arrependi. Consigo reembolso?
Não. O reembolso de ingressos adquiridos em ponto de venda físico só pode ser solicitado em caso de alteração da data ou cancelamento do evento.
O show foi adiado ou cancelado. Tenho direito a reembolso?
Sim. A solicitação de reembolso deve ser feita conforme as orientações da empresa organizadora.
Comprei meu ingresso, mas sofri um caso fortuito (fato inesperado que ocorre e cujos efeitos não podiam ser previstos ou impedidos) ou alguma doença que me impedirá de ir ao show. Eu posso solicitar reembolso do ingresso?
A professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Balcão do Consumidor da PUCRS Fernanda Nunes Barbosa aponta que, a princípio, não:
— Isso porque o fornecedor, em tese, deixou de vender seu ingresso para outra pessoa. Nesse caso, a empresa teria uma perda se o reembolsar, o que também não vejo como possa ser atribuído a ela, já que ela não concorreu de nenhum modo para o fato. No entanto, se houver tempo hábil para que haja a revenda, aí temos uma mudança de contexto fático.
Já Isabel exemplifica que o falecimento de um familiar seria um caso de força maior, o que pode ser como excludente de responsabilidade por parte do consumidor. Em princípio, seria uma justificativa para o reembolso.
— Se ele não consegue cumprir o contrato por um fato externo, ele pode, em princípio, pedir o reembolso. As empresas, possivelmente, vão recusar. Mas já houve decisão nos tribunais que, em caso de falecimento de parente, por exemplo, houve devolução do dinheiro. Só que é necessário comprovar o fato. Na ocasião, a empresa se recusou e o tribunal entendeu como um abuso por parte do fornecedor. Então, tem que ver se houve culpa do consumidor ou se houve culpa da empresa — diz Isabel.
Taxa de conveniência
A taxa de conveniência deve ser inclusa no reembolso?
Fernanda explica que sim:
— O entendimento dos Procons é que se o evento não ocorre ou se o consumidor desiste dentro dos prazos legais, ele tem direito à restituição integral dos valores gastos, incluídas todas as taxas, entre elas a de conveniência.
Comprei ingresso para um show em outra cidade, além de passagens para o transporte e reserva de hotel. Porém o show foi remarcado por um motivo que não é de força maior. Só que eu não poderei comparecer nesta nova data. Além do reembolso, eu posso entrar com ação por dano material?
Para casos assim, Isabel explica que o consumidor tem o direito de ser ressarcido por esses danos, se comprovadamente gastos.
E dano moral?
Isabel ressalta que muitas dessas ações também deram danos morais, mas isso é uma coisa discutível. Isso é incerto na jurisprudência.
— Às vezes, o juiz entende que esse desleixo gera dano moral. Outros entendem que não, dano moral tem que ser a lesão de direito personalíssimo, como a vida, honra, imagem. Dano moral se presume, enquanto o material se comprova — pondera a advogada.
Se uma empresa faz diversas promessas para um festival antes de anunciar as atrações e chega a fazer campanha incisiva para induzir a compra imediata de ingressos e eu compro, mas depois me sinto desapontado com o line-up. Qual direito eu tenho?
Fernanda explica que isso pode se caracterizar como uma prática abusiva vedada no Código de Defesa do Consumidor (CDC), no artigo 39.
— Justamente induz a uma tomada de decisão apressada e impensada do consumidor, com uso de certo “terrorismo” — diz. — Parece uma prática contrária à boa-fé, não muito transparente com o consumidor. O CDC protege as “expectativas legítimas do consumidor”. Isso tem a ver com o modo como as coisas funcionam ou funcionariam. Se criam em mim uma expectativa, ela tem de ser protegida. Se ano passado apresentaram um festival com atrações mais caras, pelo mesmo valor do ingresso cobrado este ano, a minha expectativa é de que eu teria o mesmo “nível” de atrações do ano anterior.
Isabel acrescenta que o dever de informação da empresa é muito forte no CDC. Tudo tem que estar bem explicado.
— Tem que informar tudo claramente antes: artistas, os preços, taxa de conveniência. Chama-se boa-fé objetiva. Tu não podes ofertar uma coisa que não vais cumprir, isso está no campo da “oferta”, da publicidade — argumenta Isabel. — Se a empresa falha no dever de informação, ela tira do consumidor o direito de escolha. Induz o consumidor a comprar uma coisa que não existe. Isso se chama violação da boa-fé objetiva. Só isso já gera dano moral lesão de direito personalíssimo.
Situação de calamidade
Como fica o reembolso de ingressos no Rio Grande do Sul com a Lei Nº 14.917?
Primeiramente, Isabel esclarece que essa lei precisa ser lida junto com o decreto de maio que reconheceu estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul até 31 de dezembro de 2024. O decreto é importante por causa desse prazo.
— Em caso de adiamento ou cancelamento de serviços de 27 de abril de 2024 a depois de um ano do cancelamento do decreto (até 31 de dezembro de 2025), esses eventos se sujeitam às obrigações que essa lei determina — completa Isabel.
Entre as determinações, os eventos no Estado têm o prazo para serem remarcados até 120 dias depois da data final do decreto (até 30 de abril de 2025), exemplifica a advogada.
Em relação ao reembolso, a lei o prevê apenas “na hipótese de o prestador de serviço ou a sociedade empresária ficarem impossibilitados de oferecer a remarcação dos serviços ou a disponibilização de créditos”, o que deverá ocorrer no prazo de até seis meses após o encerramento do decreto (a partir de 31 de dezembro).
— Há um problema que essa lei não aborda: e se remarcar o show em um dia que o consumidor não pode comparecer, como é que fica? A lei só fala no abatimento na compra de outro serviço, mas não de abater o valor — questiona Isabel.
Fernanda corrobora:
— Acho isso um absurdo em termos de direito do consumidor e um retrocesso, pois os consumidores também foram afetados pela situação de calamidade e seus interesses não foram harmonizados com os do fornecedor neste caso, já que não foi prevista a possibilidade de reembolso caso o consumidor não tenha mais interesse no evento. Entendo que deve prevalecer o CDC nos casos em que os consumidores demonstrarem que não têm mais interesse ou disponibilidade para assistir ao evento.
Comprei meu ingresso com meia-entrada de estudante para um festival que foi adiado para o segundo semestre de 2025 por conta da enchente. No entanto, eu me formo no final do ano. Ainda poderei utilizar este ingresso?
Fernanda salienta que, neste caso, houve uma prorrogação de contrato:
— O cumprimento desse contrato não será agora, mas ano que vem, por parte do fornecedor. O Código interpreta que é mais favorável para a consumidora valer esse ingresso de estudante, que foi toda expectativa legítima que ela tinha, do que interpretar a benefício do fornecedor.
Produtora pode impor data limite para solicitação de reembolso?
Não, só se for uma data mais longa que a prevista pela lei, como observa Isabel.
Adiamentos ou cancelamentos em casos fortuitos dentro dessa lei serão passíveis de reparação dano moral?
Não. Só cabe se eles descumprirem as obrigações.
Quando e como buscar meus direitos se alguns dos itens abordados não for respeitado pelas produtoras (fornecedores)? Quando acionar o Procon ou quando procurar advogado?
Para Fernanda, a primeira orientação é sempre procurar tentar resolver diretamente com o fornecedor. Se isso não funcionar, é recomendável o consumidor ter algum tipo de negativa comprovada, como um número de protocolo, data e hora da ligação, mensagens de WhatsApp ou e-mail, para que se possa acessar os órgãos mais facilmente.
— Não dando certo, o ideal é que se procure o Procon, que atende extrajudicialmente. O órgão irá procurar o fornecedor tentando solucionar o problema. Muitas vezes isso funciona, conseguimos resolver muitos casos. Fazemos tentativa telefônica ou envio de notificação com o nome do Procon, dando um prazo de 10 dias para o fornecedor dar sua justificativa. Senão, pode ser aberto um procedimento administrativo no Procon — explica.
Ainda, Fernanda assinala que o consumidor pode procurar primeiro pelo Procon, que também atua na parte de orientação. Ela cita também o Balcão do Consumidor, localizado na PUCRS.
Também é possível entrar com uma demanda extrajudicial pelo site consumidor.gov.br, que é um canal da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça.
Caso nenhum órgão tenha obtido retorno favorável por parte do fornecedor, a última opção é procurar um advogado para demanda judicial. Outra opção é recorrer à defensoria pública, que tem um núcleo especializado em demandas de consumo, coordenado pelo Defensor Público Felipe Kirchner.