Quando esteve em Muçum para ajudar na limpeza do município destroçado pela enchente de 2023, a museóloga Doris Couto foi impulsionada pela vocação e quis saber em que pé estava o museu da cidade. Em frente ao casarão de dois andares datado de 1939, recebeu as chaves da secretária da instituição e a viu afastar-se rapidamente para cuidar de sua casa também danificada.
Sozinha no museu, Doris demorou a sair do estado de choque e entender por onde deveria iniciar o resgate do acervo, um conjunto de relíquias retratando os costumes da cidade de imigração italiana. Armazenados em uma estante envidraçada, os livros da coleção de Padre Lucchino Viero, que empresta seu nome ao espaço, não só fediam por conta da umidade como tinham cerca de um centímetro de espessura de fungos que já criavam pelos.
Papeladas e objetos miúdos, assim como o livro tombo, que registra a relação dos itens que integram o acervo, haviam sido jogados fora pelas primeiras equipes de voluntários que entraram no prédio para livrá-lo da lama. Com autorização da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), Doris trouxe cerca de 150 peças para Porto Alegre a fim de restaurá-las no Museu Júlio de Castilhos, sob seus cuidados desde 2019.
Não sabia que salvava parte da memória de Muçum de uma segunda enchente quase tão severa, a do mês passado, que levou embora o que havia restado no museu. Com ajuda de estudantes do curso de Museologia da UFRGS, Doris passou a tratar as peças em madeira, aço e metal, como uma coleção de máquinas de costura e os livros de padre Lucchino, um deles uma encadernação reunindo edições antigas de jornais da cidade.
— Passado o momento de salvar vidas, precisamos olhar para as estruturas da cidade que também foram prejudicadas. Geralmente, os museus e os espaços culturais são os últimos a serem lembrados. Tudo o que há em um museu é doado por alguma família, por alguma pessoa, e os museus mantêm essas memórias afetivas da população — afirma Doris.
Obras de arte podem ser salvas
A experiência com o museu de Muçum serviu de preparo para um desafio em larga escala. Nomeada em abril para liderar o Sistema Estadual de Museus (SEM), ligado à Sedac, a museóloga mapeou instituições engolidas pelas enxurradas. Cinquenta e oito foram atingidas, sendo que 24 tiveram as dependências inundadas e 18 sofreram infiltrações. Sem falar em lugares como o Pão dos Pobres, em Porto Alegre, um dos mais antigos orfanatos do país e cujo acervo particular ficou debaixo d’água.
Doris alertou os museus de que materiais em metal, madeira e papel podem ser salvos. Também fez viagens aos locais mais impactados, como o museu de Igrejinha, no Vale do Paranhana, e visitas espaços culturais autogeridos, como o Museu do Trabalho, conhecido pelas exposições de gravuras e fotografias no Centro Histórico da Capital.
Enquanto mergulha as peças de Muçum em água límpida para tirar a ferrugem, Doris planeja uma exposição com o acervo que ganhou nova vida, a partir de 4 de setembro. Pedirá aos próprios moradores que ajudem a contar as histórias do que foi resgatado.
— Nem tudo conseguiremos deixar da forma como era antes. Ficarão fissuras nessas peças recuperadas, algumas partes quebradas, mas são registros dessa enchente que vivemos — diz.
Histórias de resgate e restauração
O trabalho de recuperação dos acervos das instituições culturais atingidas pela enchente tem de ser feito em diversas etapas, priorizando o que demanda atenção imediata. A ação rápida de voluntários, por exemplo, em Igrejinha, garantiu que a memória do município não fosse completamente perdida.
O Sistema Estadual de Museus, entidade vinculada à Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), convocou profissionais experientes no manuseio de acervos históricos para auxiliar em instituições atingidas pela enchente. Foram recrutados 484 voluntários. A museóloga Barbara Hock não estava entre eles. Decidiu agir por conta própria e atuar como voluntária nos acervos particulares que poderiam ficar desassistidos. Um desses casos é o do Pão dos Pobres, que foi criado em 1895 para acolher órfãos e cujo prédio erguido em 1930 em uma região aterrada de Porto Alegre, o antigo arraial da Baronesa, hoje Cidade Baixa, já sobreviveu à enchente de 1941.
Ficarão fissuras nessas peças recuperadas, mas são registros dessa enchente que vivemos.
DORIS COUTO, MUSEÓLOGA E COORDENADORA DO SISTEMA ESTADUAL DE MUSEUS
No dia 7 de maio, funcionários do Pão dos Pobres entraram de barco e tiraram d’água peças raras que eram armazenadas no memorial da instituição, situada nos galpões onde são realizadas oficinas para os jovens. Dali foi salva uma foto em grande tamanho de uma mulher chamada Berthe Eugenie Gosse feita por Sioma Breitman (1903-1980), fotógrafo nascido na Ucrânia e radicado em Porto Alegre, onde se tornou notório por registrar a vida da cidade. Também foi resgatada uma fotografia de José Marcelino de Souza Bittencourt, fundador do Pão dos Pobres, cujo retrato foi feito no estúdio dos Irmãos Ferrari.
Livros com os nomes de órfãos que já passaram pela instituição e boletins informativos produzidos desde 1901 pelos próprios jovens foram postos em freezers para interromper a proliferação dos fungos. Só serão descongelados quando Barbara e a conservadora e também restauradora Diana Bulcão já tiverem dado conta das pilhas de papéis e fotografias que precisaram de atenção imediata, exemplificam as profissionais.
— Em um primeiro momento, atuamos em fotografias e negativos que estavam derretendo debaixo d’água. Depois, fizemos o congelamento de documentos. O congelamento paralisa o processo de degradação causado por microrganismos – diz Barbara, sobre essa técnica bastante utilizada em diversos acervos neste pós-enchente. – Esses papéis deverão ser descongelados e abertos com muita calma, muita paciência. Um acervo prejudicado precisa de atenção e carinho, como se estivesse em uma UTI — complementa.
Ela e Diana encontraram uma fotografia de um padre ao lado de jovens. No verso, havia a seguinte mensagem: “Sr. Espauliol, 1941. Na enchente de maio de 1941 ele salvou o material de tipografia”. São surpresas que vão surgindo em meio a relíquias abrigadas em uma instituição tão antiga.
— Um acervo de museu ou de uma instituição como esta é como se fosse um idoso esperando alguém que queira ouvir as suas histórias — resume a museóloga.
A história a salvo
Em Igrejinha, no Vale do Paranhana, a museóloga Daniela Schimitt separava roupas doadas aos atingidos no ginásio do município até ouvir falar que o Museu Professor Gustavo Adolfo Koetz, assim como o arquivo histórico, ambos sediados em casas de estilo enxaimel no Parque de Eventos Almiro Grings, à beira do Rio Paranhana, haviam sofrido graves avarias. Com a força da água que chegou e acumulou-se a uma altura de 1m80cm na parte interna, a parede do arquivo foi arrancada e as portas do museu, arrombadas. Do lado de fora, o livro tombo contando a trajetória das peças jazia na beira do rio, coberto de lama.
Diante de uma pequena súplica do secretário de Cultura do município dizendo que Igrejinha não tinha recursos suficientes para dar conta de tudo o que a enchente pusera abaixo, Daniela largou a função de voluntária no ginásio e tornou-se referência na recuperação do patrimônio histórico da cidade fundada em 1887. Muito já havia se perdido, incluindo 90% dos documentos do arquivo de cerca de 12 mil livros da Biblioteca Municipal, também situada no parque, todos dados como irrecuperáveis. Outros 500 discos de vinil, incluindo gravações de bandinhas alemãs, aguardavam para ir para o lixo.
Tomadas por mofo, partituras musicais de Gustavo Adolfo Koetz, músico e compositor responsável pelo hino de Igrejinha, também foram congeladas.
Um acervo de museu ou de uma instituição como esta é como se fosse um idoso esperando alguém que queira ouvir as suas histórias.
BARBARA HOCK
Museóloga
O livro tombo foi seco pacientemente por Daniela. Sem acesso a papel mata-borrão, conhecido pelo grande poder de absorção, a museóloga utilizou rolos de papel-toalha comprados em um supermercado para sugar a umidade das páginas. No futuro próximo, sua leitura permitirá dimensionar o tamanho da perda do acervo do museu.
Os discos de vinil foram lavados em água corrente.
— Se eu não agisse rápido para recuperar esses materiais, que são patrimônio da cidade, meus filhos não teriam museu, arquivo e biblioteca. A história documentada de Igrejinha iria se perder totalmente. E a gente precisa saber de onde viemos e para onde vamos – define a museóloga Daniela.