Hermeto Pascoal virou sinônimo de hermetismo em um país que só dá holofotes para o que toca nas rádios. Conhecendo a origem e o pensamento de um dos maiores músicos contemporâneos do mundo, fica mais fácil entender por que sua sonoridade é assim, experimental, improvisada, fora do padrão, amalucada para ouvidos acostumados às pegajosas rimas chicletes. Aos 87 anos, o multi-instrumentista estará em Porto Alegre nesta quinta-feira (8), às 20h, no átrio do Farol Santander, para mostrar a antigos e novos públicos que toca para todos. O show faz parte da programação do Porto Verão Alegre.
Criado em Lagoa da Canoa, no município de Arapiraca, agreste do Alagoas, Hermeto começou a tocar sanfona de oito baixos aos oito anos, junto com o irmão, José Neto, um ano mais velho. Pegavam o instrumento do pai quando este rumava para a roça. Quando não tinha de onde tirar som, extraía música da natureza ao redor: galhos, folhas, pedras. Veio daí a mania de incrementar objetos nos shows — garrafas, panelas, chaleiras — para mostrar que, embora tenha aprendido a tocar acordeão, piano e teclado, tornando-se nome aclamado do jazz e da música instrumental, manteve a simplicidade.
— Naquele tempo, na minha infância, não tinha luz elétrica. Eu não tinha flauta, nada. Como tinha intuição musical, olhava para o mato, juntava aquilo ali e bolava os instrumentos — lembra Hermeto, em entrevista concedida a GZH por ligação para telefone fixo, na tranquilidade de sua casa no Rio, em conversa que durou pouco mais de uma hora.
Ele tem uma forma genuína de enxergar a música. Não acha que é a teoria que pode levar ao som de qualidade — autodidata, só foi aprender a ler partituras quando já havia gravado os primeiros discos na década de 1970 e tocado ao lado de um dos maiores músicos de jazz de todos os tempos, Miles Davis, em um encontro que entrou para a história. É como se entendesse que a música existe em qualquer coisa, basta desvendá-la. Mas é avesso a fórmulas prontas. Acredita que o trabalho deve ser feito com originalidade:
— Eu não tive professor porque, quando eles viam eu tocar, já diziam que não precisava. Mostrei para o mundo que a teoria não é música. É uma maneira de decorar. Se você for numa escola de música, você vai ver que tem 50 alunos estudando a mesma coisa. Que futuro tem o mundo? A música tem que ser tocada de maneira que cada um sente. Essa é a música universal.
É inevitável perguntar qual foi o instrumento não convencional que mais lhe surpreendeu em oito décadas manuseando música:
— O talo da abóbora. E outros talos de outras coisas. Mas o talo da abóbora é maior. Dá para tirar as folhas de cima e, se quebrar o finalzinho do cano, dá para você fazer o instrumento que quiser. Eu fazia uma flautinha, mas da minha cabeça, porque nem sabia como era feita uma flauta. Mas fazia da maneira que saísse o som que queria.
Não há erudição em Hermeto Pascoal, embora seu público pareça ser erudito, distanciado dos hábitos musicais da maioria da população. Mas há certa chateação por não ser tão reconhecido no Brasil como é lá fora. Em 2023, recebeu o título doutor honoris causa da Juilliard School, universidade de Nova York conhecida pela tradição no ensino de música, dança e dramaturgia, condecoração que já havia ganho em 2017, da New England Conservatory, em Boston.
— Aqui no Brasil tem pouco espaço para o que chamam de música instrumental. Tem preconceito, não do público, mas dos produtores, dos contratantes. Os produtores acham que o povo daqui não gosta de música que não tem letra. Só que penso o contrário. Penso que a música, quando não tem letra pronta para ela, tem várias letras de uma vez só ao mesmo tempo. Quando as pessoas escutam uma música sem letra pronta, elas podem imaginar e escrever tudo o que está escutando. É muito mais criativo.
E o tal Miles Davis (1926-1991), que sempre entra no assunto quando se fala em Hermeto Pascoal, disse, em entrevista à uma rádio francesa, que queria ser um músico igual ao "albino Hermeto Pascoal". Compuseram juntos a música Little Church, que entrou para o disco Live Evil (1971) do americano.
— Éramos fãs, eu dele e ele d'eu. Foi divulgado na Europa toda, no mundo todo se sabe disso.
Mas foi Elis Regina (1945-1982) uma das artistas que mais lhe comoveram. Sem ensaio e sem combinação, apresentaram Garota de Ipanema e Asa Branca para uma sortuda plateia do Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1979. Hermeto desafiou Elis no piano, que, corajosa, mostrou que sabia cantar de improviso em cima de acordes improváveis.
— Eu, na minha existência até agora, nunca fiz música com um cantor como Elis Regina. Foi lindo porque, quando nós terminamos, ela disse para o Cesar Camargo Mariano (marido, produtor e pianista de Elis): "Tá vendo, bicho? É assim que gosto de cantar". Por que eu chamo esse tipo de música de universal? Porque a criatividade é uma liberdade universal.
Com os músicos Fábio Pascoal (percussão), Itiberê Zwarg (baixo e voz), Ajurinã Zwarg (bateria), João Paulo Barbosa (sax e flauta), André Marques (piano), grupo que o acompanha e com quem estará em Porto Alegre, garante que mantém a mesma relação de liberdade: apresenta as partituras com as composições, mas não os mantêm amarrados a elas.
— Sempre falo para eles: "Escrevi isso para vocês porque vocês não sabem o que eu compus, mas está livre para vocês interpretarem à vontade". É para não perderem a liberdade de intuição que todo mundo tem.
Hermeto Pascoal e grupo
- Quinta-feira (8/02), às 20h
- Átrio do Farol Santander (Siqueira Campos, 1.125), em Porto Alegre
- Ingressos a R$ 80 (inteira)