Ao término da entrevista, Durque Costa Amaro espirituosamente faz uma sugestão à reportagem:
– Pode escrever aí: “Cigano continua amando a Lua e as estrelas”. “Segue bem cuidado pela vida.” “Rejuvenesce a cada dia que passa.”
Aos 73 anos, o cantor e compositor persiste como lenda viva da noite porto-alegrense. Mais conhecido como Cigano, ele atravessa mais de cinco décadas se apresentando pelos bares da capital gaúcha. Chipp’s, Barcelona, Se Acaso Você Chegasse, enfim, a lista de estabelecimentos é extensa. Sempre com seu repertório que vai do samba ao sertanejo, do rock ao pop romântico, da música latino-americana ao country. Até canções em italiano entram. O que for necessário para entreter o público, como um bom músico da noite.
Agora é possível conhecer o trabalho autoral de Cigano: em novembro, nove álbuns dele foram disponibilizados nas plataformas digitais, distribuídos pela Tratore. O resgate da obra foi produzido por Paulinho Parada, pesquisador doutorando em Música pela UFRGS e apadrinhado musical do cantor.
Os álbuns disponibilizados transmitem toda a versatilidade que Cigano se aprofundou como músico da noite. Há o samba de Iemanjá e Nega Ângela, o samba-canção de Cavaquinho de Valor, o pagode romântico à la Raça Negra de Saudade, as influências de Roberto Carlos em Minha Luz e Naufrágio, o blues e o soul de Vou Olhar pro Céu e o country do hit Porto City.
Canção que dá nome ao disco de 1983, Porto City celebra a capital porto-alegrense, citando o Gre-Nal (“O Beira-Rio e muita cor/ Ela é gremista/ E eu sou Inter/ Que horror”), Kleiton & Kledir e até o Analista de Bagé, personagem criado por Luis Fernando Verissimo. A faixa ainda rendeu a gravação de um clipe para o antigo bloco local do programa Fantástico, da TV Globo.
Conforme Parada, Cigano é um artista cosmopolita, que não se prende a rótulos ou amarras:
– Acho que Cigano se intitula “lenda da noite” ou “músico da noite” por questão de abarcar vários gostos e estilos em um só. Ele quer ser visto e ouvido por pessoas de várias tendências, sendo reconhecido como um compositor.
No total, Cigano calcula ter composto 280 canções – entre seus parceiros de criação estão Paulinho Parada, Péti Carvalho e Lupicínio Rodrigues Filho. Já como músico da noite, estima ter se apresentado em mais de 200 estabelecimentos ao longo de cinco décadas, entre bares e boates. O gosto pela música vem de família.
Natural de Dom Pedrito, na Campanha, Cigano se mudou para Porto Alegre aos seis anos. Sua família buscava tratamento para o pai, Catharino Amaro, que sofria com a esquizofrenia. Durante dois anos, viveu com nove irmãos e a mãe, Amabilia Costa, em uma casinha perto da atual rodoviária, na época uma estação ferroviária.
A família foi realocada para o Morro da Cruz, no Partenon. Por lá, Cigano descreve ter tido uma infância linda – o que aborda no samba Neguinho do Morro –, mas, especialmente, musical. Nesse quesito, ele aponta ter uma hereditariedade muito forte.
– Meus tios tocavam na Banda da Brigada. Minha mãe também adorava cantar e arranhar um violão. Ela mesma dizia: “Filho, tu vai ser cantor”, já que sempre fui canário desde menino – recorda.
Ainda na juventude, ele ganhou um violão Di Giorgio e, em seguida, começou a ter aulas com Jessé Silva, um dos maiores nomes do violão popular e do choro no Estado. Foram poucas aulas, pois, segundo Cigano, o professor tentava induzi-lo a tocar violão clássico. Por sua vez, o jovem buscava se acompanhar cantando nas rodas de samba.
Foi entre os 14 e 16 anos que Cigano saiu de casa “meio fugido” para ver Lupicínio Rodrigues cantar no bar Adelaide’s, no alto da Marechal Floriano, no Centro. Era lá onde Lupi se reunia com a nata da boêmia da cidade, em mesas em que o cantor e compositor era acompanhado por nomes como Túlio Piva, Plauto Cruz, Jessé Silva, entre outros. Cigano os admirava enquanto tomava guaraná.
– Eu ficava obcecado vendo Lupicínio. Tinha que aproveitar que eles começavam cedo, antes de pegar o último ônibus para o Partenon – conta.
Além de Lupi, outra influência forte foi a Jovem Guarda, sobretudo Roberto Carlos. Cigano lembra que um dia estava em casa, à sombra, tocando violão e cantando Carinhoso, de Pixinguinha. Até que um primo viu a performance e o aconselhou a cantar as músicas do Rei, pois teriam vozes parecidas. Foi um clique.
– Passei a incorporar Roberto Carlos. Como todo mundo tem seus espelhos, comecei cantando as canções do Rei. Eu imitava bem direitinho a voz dele – diz.
Aos 18, o músico compôs sua primeira canção: O Cigano, que viria a ser seu nome artístico. Ele descreve a letra como “um lamento sobre uma cigana que foi embora”. A canção era apresentada em programas de rádios locais e, de acordo com o artista, recebia muitas cartas elogiosas.
– Os radialistas me levavam aos clubes da época para cantar Roberto Carlos, mas o pessoal pedia Cigano. Aí me vestiram com colar, brinco, turbante, me transformaram num cigano. Eu me vestia assim, mas cantando Roberto. E começaram a me chamar assim – relata.
Cigano passou a cantar nas churrascarias, bares e restaurantes não só da Capital, mas também pelo Interior. Foi então que ele que se profissionalizou e virou músico da noite. No começo dos anos 1970, viveu brevemente em São Paulo para tentar carreira no centro do país. Gravou um compacto com as faixas Iemanjá e Simplesmente Mãe e chegou a divulgar seu trabalho o Rio de Janeiro, mas não decolou.
– Eu estava bem, mas minha mãe morria de saudades de mim e estava em dificuldades. Não sei se um grande sucesso cobriria essa necessidade de carinho da mãe e dos irmãos. Voltei, e a noite me abraçou.
“O Veinho se puxa”
Ao longo das décadas, Cigano seguiu gravando discos de forma esporádica e independente. Até tentou outros ares: trabalhou como mecânico, chegou a ter sociedade em bares – tendo em 2005 inaugurado o seu próprio, Porto City, que ficaria conhecido como Bar do Cigano e duraria oito anos – e foi até candidato a vereador em 2000. Mas nada “fortificou”, como define.
Cigano brinca que perdeu as contas de quantos bares inaugurou nas últimas cinco décadas. Há seis anos, seu templo é o Claudinha Gastrobar, localizado no bairro São Geraldo, na Zona Norte. Por lá, ele sobe ao palco duas vezes por mês – além disso, varia de 10 a 15 apresentações mensais realizadas em eventos e shows particulares.
Para Claudia Matiello, proprietária do Claudinha Gastrobar, os shows de Cigano costumam ser surpreendentes, pela energia fora do comum que o músico tem.
– Ele interage bastante e sabe animar o público. Cigano também compartilha o show com as pessoas, sejam profissionais ou não, que querem dar canja – descreve Claudia. – O público dele é eclético, mas 70% é da meia-idade para cima. E todo mundo gosta. Ele sabe até músicas em inglês. Olha, o “veinho” se puxa.
As pessoas aparecem para mim e dizem: ‘Pô, tu ainda não morreu!’ (risos). ‘Tu não envelhece!’ É que a música segue sendo meu H2O. É tudo. Durmo, sonho e acordo cantando.
DURQUE COSTA AMARO, O CIGANO
Cantor
Cigano explica que 30% de seu repertório é autoral. A espinha dorsal costuma ser o samba, mas também traz nomes da MPB (Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, entre outros), pode entrar sertanejo e até músicas em italiano ou espanhol. O público faz o show. Nas apresentações, também há uma parte em que Cigano veste seu quepe de marinheiro. É um momento em que o cantor reverencia o mar, toca Iemanjá e explora canções de samba.
De acordo com o amigo e parceiro de composições, Lupicínio Rodrigues Filho, Cigano se transforma quando está no palco:
– No palco, a sensibilidade dele se multiplica e atinge todas as suas nuances de compositor, intérprete e comunicador. Cigano toca com uma essência muito forte e uma desenvoltura muito grande.
Participante The Voice +, em 2022, Zê Azemar tem 65 anos e conhece Cigano há mais de 45. Ambos são companheiros da noite porto-alegrense. Para ele, o amigo tem uma musicalidade muito pessoal:
– É um jeito peculiar de executar o violão, um timbre de voz e um jeito de cantar que o identifica, mesmo quando se ouve sem a sua presença física ou imagem. Um artista único que temos na noite de Porto Alegre, na sua forma de agir e vestir quando está no palco.
Nome de destaque do samba gaúcho, a cantora, compositora e atriz Pâmela Amaro é sobrinha de Cigano. Ela lembra de ver, desde pequena, o tio tocando muita energia nas festas de família.
– Ele é um pessoa que transmite muita fé na vida, tanto pela personalidade como pela música que faz. Costuma ser muito conversador, está sempre brincando com as pessoas e isso é muito especial nele. Também são características de uma certa forma da nossa família – analisa Pâmela. – Pessoas que sempre tiveram a festa como um lugar de encontro, de manutenção da amizade e da vibração. Ele tem isso e outros tios também, mas ele consegue trazer tudo isso para música.
Parada sublinha que Cigano é um dos maiores artistas do Estado, só que sem ter recebido o devido valor. Para o pesquisador, o músico é muito maior do que a alcunha de “lenda da noite” indica.
– Também é um grande compositor, e poucas pessoas gravaram a obra dele e o reconhecem como tal. Acho que agora, com a facilidade do streaming, as pessoas vão ter acesso a esse trabalho – observa Parada.
Enquanto isso, Cigano continua fazendo história, bem ativo. Aliás, o cantor brinca com a passagem do tempo. Atesta que as pessoas não o veem com 73 anos. Talvez pelo fato da música oxigenar sua vida.
– As pessoas aparecem para mim e dizem: “Pô, tu ainda não morreu!” (risos). “Tu não envelhece!” – diverte-se. – É que a música segue sendo meu H2O. É tudo. Durmo, sonho e acordo cantando.
Portanto, Cigano segue amando a noite – a Lua e as estrelas. Segue bem cuidado pela vida. Rejuvenesce a cada música que canta.