Por Everton Cardoso*
Quase 130 anos nos separam do momento da escrita do texto de João Simões Lopes Neto e José Gomes Mendes e da composição da música de Manuel Acosta y Olivera. A opereta intitulada Os Bacharéis, no entanto, segue provocativa e absolutamente atual. Montada pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Ospa, e apresentada na noite de sábado (2), na sala do conjunto sinfônico da capital, foi uma bela oportunidade para conferir uma outra faceta da obra do escritor sul-rio-grandense que é mais conhecido por livros como Contos Gauchescos e Lendas do Sul.
Como é típico do gênero, a opereta, que estreou em 23 de junho de 1894, no Theatro Sete de Abril, em Pelotas, narra uma história cômica. Nesse caso, em três atos, a trama se desenrola a partir da ação de Cincinatus, que se aproveita de seu prestígio como bacharel para impedir o casamento de Caricina, por quem é apaixonado. Ele alega uma confusa relação de parentesco entre ela e o noivo, Pombinho. O que o articulador da trama não contava é que, depois de três anos de noivado com a moça, o ex reapareceria, agora ele também "doutor" e despertando interesse de sua amada — e de todas as demais mulheres, há que se dizer.
O brilhantismo da obra está numa ironização muito precisa da condição de bacharel. Primeiramente, porque Cincinatus e seus irmãos são apresentados com tom bastante ridicularizado a partir do próprio texto. É o que acontece, por exemplo, quando por primeira vez surgem em cena e cantam enfileirando expressões do jargão jurídico apenas por fazê-lo, sem que haja um encadeamento muito articulado de ideias. Além disso, quando Sizenando e Beroaldo expressam suas ambições e realizações como deputado e diplomata, respectivamente, são retratados como delirantes e descabidos. O deboche com relação a como a sociedade se porta diante desses sujeitos ilustrados é mostrado, no terceiro ato, por meio do deslumbramento vazio das pessoas com o retorno de Pombinho — agora também bacharel —, o que motiva a mudança de ideia de Caricina.
Um dos grandes méritos do espetáculo é a direção cênica, que esteve a cargo de Marcelo Ádams. Ele havia interpretado, como cantor e ator, um dos papéis principais na montagem levada à cena em 2005, quando o texto e a música originais foram reconstituídos a partir de um esforço de Cláudia Antunes e Márcio de Souza. Naquela ocasião, a adaptação do texto e a direção foram de Élcio Rossini. Na encenação deste sábado, foram inúmeros os momentos em que uma bem pensada partitura de movimentos estruturou a ação de modo a fazer funcionar muito bem a comédia. Atrizes e atores estavam claramente preparados e bem ensaiados. O ritmo das cenas era preciso, assim como as transições entre elas e as alternâncias do elenco. A atuação, por conta disso, foi impecável.
Flávio Leite, tenor, desempenhou muito bem o papel de Cincinatus, mostrando uma precisão no ritmo e uma profusão de trejeitos que são importantes para o papel do bacharel que dispara toda a trama. Juntamente com os barítonos Sérgio Sisto e Henrique Cambraia — Sizenando e Beroaldo, respectivamente —, forma o trio de irmãos que, com ações e posturas cênicas, mostram-se imaturos e birrentos — como quando chupam pirulitos dados pelo pai ou quando brigam entre si — e enfatizam o lugar de filhos mimados da aristocracia local. Corroboram, assim, o que Lopes Neto e Gomes Mendes colocaram no texto. Entre as atrizes, o destaque foi a ótima atuação de Elisa Machado como Caricina. Mesmo com poucos trechos de canto, roubou a cena em muitos momentos. Felipe Bertol também esteve bem no papel de Pombinho, migrando com maestria do lugar de noivo abandonado, no segundo ato, para o de galã conquistador que lhe coube no terceiro.
No aspecto musical, destacou-se o baixo-barítono Guilherme Roman, que interpretou o pai do trio de bacharéis e se saiu muito bem tanto no canto quanto na caracterização do ancião. Nenhuma surpresa para quem viu, no ano passado, o excelente Papageno a que ele deu vida na montagem de A Flauta Mágica realizada pela Orquestra Theatro São Pedro e pela Companhia de Ópera do RS (CORS). Também o tenor Oséas Duarte e a soprano Izabella Domingos desempenharam muito bem os papéis de convidados e, principalmente, o de bilontras, quanto cantaram. Sob a regência de Evandro Matté, a Ospa mais uma vez se apresentou bem. Bruno Duarte, violonista, também teve destaque na interpretação solo.
Nesta sexta (8), às 20h30min, a mesma montagem será levada à cena em Pelotas no Auditório do Sicredi (Av. Dom Joaquim, 1.087), com ingressos já esgotados. Está aí uma oportunidade para quem ainda não assistiu. Por um lado, pelo próprio caráter histórico da obra, afinal, é regional e pungente ao mostrar uma crítica da Princesa do Sul no século 19 e do sempre lembrado fluxo de filhos de famílias abastadas para o centro do país, de onde retornavam estudados e refinados demais para o contexto local. Mas isso, como é frequente na obra de Simões Lopes Neto, abrindo janelas para a atualidade: afinal, o que esperamos dos bacharéis de nosso tempo?
* Jornalista e crítico