Há shows que marcam cidades para sempre. Ou deixam muitas histórias para serem contadas ao longo das décadas. Teve aquela vez que os escoceses do Nazareth se apresentaram em Vacaria, em 2010. Ou quando foram até Nova Prata, entre outras localidades, três anos depois. A turnê da Shakira pelo interior gaúcho, em 1997, mexeu com municípios como Uruguaiana, Rio Grande, Bagé, entre outros. O metal alternativo Helmet esteve em Capão da Canoa em 1994. O desbravador Paul Di’Anno, em Frederico Westphalen, em 2009. Dois dias antes de seu acidente fatal, em 1996, os Mamonas Assassinas tocaram na Festa da Uva, em Caxias do Sul.
Sobram exemplos. No livro Rita Lee & Tutti Frutti — Santa Maria, Maio de 1978, o músico, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e escritor Gérson Werlang conta a história da apresentação da Rainha do Rock Brasileiro no coração do Rio Grande.
Rita morreu nesta terça-feira (9), aos 75 anos. Ela tinha sido diagnosticada com câncer de pulmão em 2021 e estava em tratamento contra a doença desde então.
A publicação de Werlang foi lançada na última sexta (5), pela Editora Memorabília. Ele reconstitui tanto a segunda passagem de Rita por Santa Maria, que é o mote da obra, quanto a primeira. Antes, a cantora passou pela cidade em 1972, enquanto integrava Os Mutantes. Logo em seguida, ela deixaria a banda. Essa apresentação de seis anos antes tem sua história recuperada no livro, com o autor trazendo bastidores e contexto da época.
Aliás, a obra trabalha não só o relato das apresentações. A trajetória de Rita nos anos 1970, com seus discos e a relação com a banda Tutti Frutti, é entrelaçada com narrativas sobre personagens, eventos e locais afetivos de Santa Maria na mesma década. Werlang define o livro como uma crônica de memórias. Sua intenção era promover um diálogo entre um show de expressão nacional com o cotidiano santa-mariense, fazendo com que os moradores da cidade se vissem no livro.
— Queria mexer um pouquinho com uma memória bem afetiva. Que as pessoas daquela geração se reencontrassem consigo mesmas e vissem como talvez elas fossem diferentes, como eram mais liberais, tinha pensamento aberto ao mundo, algo que muitas vezes isso já não acontece — explica. — Para as novas gerações, o livro traz um lugar que você talvez nem desconfie, mas que aconteceram tantas coisas bonitas e interessantes. E sempre é um caminho que pode ser refeito.
Natural de Santa Rosa, Werlang se mudou para Santa Maria em 1980. Cresceu ouvindo rock, o que incluía Rita Lee esporadicamente. Quando descobriu a fase setentista da cantora, acompanhada pelo grupo Tutti Frutti, seu interesse pela obra da artista aumentou exponencialmente. O músico, então, soube que Rita havia visitado a cidade nos anos 1970. Não só uma, mas duas vezes, em vias de encerrar dois projetos, tanto com Mutantes quanto com Tutti Frutti — o que despertou a atenção de Werlang.
Eventualmente, ele perguntava para as pessoas que tinham ido ao show sobre como foi a experiência, o que ela tinha tocado, só que poucos lembravam. Aquela curiosidade sobre a apresentação não vista acompanhou Werlang durante um bom tempo. Aos poucos, ele amadureceu a ideia de que escreveria sobre essas passagens. O músico começou a pesquisar a respeito, até que certa altura isso virou um projeto de não ficção.
Em 1978, Rita visitou Santa Maria com a turnê do disco Babilônia, de faixas como Disco Voador, Agora É Moda e Jardins da Babilônia. Foi o último álbum da cantora acompanhada do Tutti Frutti. Havia muitas tensões entre Rita e o grupo, principalmente pela entrada de Roberto de Carvalho, que se estabeleceria como companheiro de vida da artista. No ano anterior, ela havia dado à luz seu primeiro filho, Beto Lee. Werlang observa também que era um período de transição daquela Rita do rock para a Rita mais pop dos anos 1980.
Então, quando subiu ao palco do Ginásio do Corintians (mesmo local onde se apresentou com Os Mutantes), no dia 16 de maio de 1978, Rita e seus comparsas viviam uma fase conturbada. Porém, apesar das tretas internas, Werlang descreve no livro que a apresentação foi arrebatadora. Para o autor, um show desses em uma cidade que não é tão grande, não é uma capital, tem uma durabilidade muito maior:
— As pessoas que vão convivem mais tempo com o show. Influencia na forma de vestir, de ouvir música e de se comportar. Essa apresentação é um símbolo de várias outras que cruzaram a cidade e impactaram a cultura da região, junto com o que se produzia por aqui.
O show em Santa Maria foi um dos últimos de um ciclo inesquecível para a cantora: ao lado do guitarrista Luiz Carlini, ela uniu o glam com o rock clássico, em faixas requintadas e divertidas, muitas vezes trabalhadas na ironia. A obra-prima dessa fase é o disco Fruto Proibido, de 1975, de hits como Ovelha Negra e Agora Só Falta Você.
— Não existe na América uma Rita Lee. Não existe uma Rita Lee na Argentina. Uma mulher do rock com uma produção autoral, que tenha tido uma influência tão forte em seu país. Ela é realmente singular — conclui Werlang.
Rita Lee & Tutti Frutti — Santa Maria, Maio de 1978
- Editora Memorabilia
- 20 páginas + libreto de fotos de 16 páginas
- R$ 50 em memorabiliastore.com.br.