Por Henrique Inglez de Souza
Jornalista e crítico musical
– Num hotel fubeca de Belém, aquele calorão, entra uma funcionária para varrer o quarto assoviando o solo de Ovelha Negra. Eu estava deitado na cama, olhando para a TV. Pensei: ‘Pô, como é que pode? Ela está assoviando sem nem saber que fui eu que fiz? Como a música tem esse poder tão extenso de tocar uma pessoa!’.
Quem revisita a memória é Luiz Carlini, no alto de seus 68 anos de idade. Na ocasião, meados da década de 1970, ele viajava o Brasil com Rita Lee a bordo da banda Tutti Frutti. Era a turnê promocional de Fruto Proibido, disco que faria história no rock e que o tornaria ícone da guitarra brasileira. Um legado que completou 45 anos em 2020.
Rita Lee ainda não havia engrenado pra valer. Desde 1972, suas investidas pós-Mutantes causavam entusiasmo morno. O jogo só mudou em junho de 1975, quando a Som Livre lançou Fruto Proibido. O sucesso a aprumou nos trilhos. Ao menos três faixas ganharam vida própria: Agora Só Falta Você, Esse Tal de Roque Enrow e Ovelha Negra.
Porém, essa não foi obra de um protagonista só. Resultou de cabeças que se alinharam na medida certa. Algo iniciado em 1973, quando a roqueira trouxe para sua garupa a banda Lisergia – cujo núcleo criativo resumia-se ao baixista Lee Marcucci e a Luiz Carlini.
O primeiro fruto dessa química não foi o proibido, mas um disco que não saiu. Já o segundo, Atrás do Porto Tem uma Cidade, veio em 1974, sem aquela força esperada. Fruto Proibido, por sua vez, mostrou-se robusto e peculiar. Era o entrosamento, que enfim brilhava!
Enquanto a cena brasileira flertava com o rock progressivo, o combo Rita Lee & Tutti Frutti focou no classic e glam rock.
– Eu andava bastante antenado aos Rolling Stones, e a Rita, mais a David Bowie – conta Carlini, que também se nutria de Johnny Winter e Joe Walsh.
Mas as preferências musicais eram apenas um recorte do ambiente que os abraçava.
– Preparamos Fruto Proibido durante o Carnaval de 1975 e gravamos logo depois. O disco nasceu de maneira divertida, com a gente curtindo o que estava fazendo. Bem afiados. Acho que foi o melhor momento da banda, e foi quando a Rita Lee se tornou a rainha do rock brasileiro.
Carlini crê que sua bagagem empurrou Rita Lee para a cadência 4x4 do rock. Isso abriu espaço para riffs, distorção e solos ardidos.
– Era o meu momento. Eu estava crescendo como músico, como compositor. Participei do disco inteiro. Tem meu cheiro em tudo aquilo. O lance era muito criativo.
Esse lance criativo também incluía o baterista Franklin Paolillo, que havia se unido ao Tutti Frutti naquele álbum. Ele arrematou o repertório com maestria. Já o acabamento ficou por conta de convidados, como Manito, e da então promissora parceria de Rita Lee com Paulo Coelho nas faixas Cartão Postal, Esse Tal de Roque Enrow e O Toque. O material surgiu pronto para decolar. E decolou.
Fruto Proibido chama a atenção pela sonoridade. Há uma organicidade peculiar em relação ao rock nacional daquele período. E aí valeu a colaboração de um sujeito inglês que vivia no Brasil havia não muito tempo: Andy Mills.
– Se tem um cara vital na história desse disco é ele. Conheceu a Rita, começaram a namorar, e aí entrou para a banda como técnico – rememora Carlini.
Mills veio ao país em 1974, como gerente de palco da turnê de Alice Cooper, e por aqui ficou. Desde a metade dos anos 1960, vinha trabalhando com um punhado nada modesto de nomes do rock: Black Sabbath, Rolling Stones, Uriah Heep, entre outros. Calejou-se em variadas funções antes de começar a migrar para a produção.
Além dos rolês com grupos diversos, tinha absorvido conhecimento em locais como Olympic Studios e Island Studios, no Reino Unido, e Record Plant e Sunset Sound, nos Estados Unidos. Essa quilometragem contrastou quando conheceu o Brasil.
– As primeiras coisas que notei foram o jeito como os estúdios eram construídos e as técnicas de gravação usadas. Nada parecido com o que eu tinha visto e feito. Para mim, houve certo choque cultural, em todos os aspectos – descreve Mills.
As gravações de Fruto Proibido ocorreram em abril de 1975, no Estúdio Eldorado, em São Paulo. Se a receita do inglês parece batida hoje em dia, na época rendeu um molho especial ao som do disco.
– Deixei todos na mesma sala para capturar um clima mais ao vivo – conta. – Acho que isso fez com que o resultado soasse novo. A banda estava bastante unida, então, fomos capazes de captar momentos mágicos – completa.
Se de um lado há letras inteligentes, de outro, Fruto Proibido apresenta músicas fortes, diretas e sem as longas improvisações em voga. Tal somatório encurtou a distância entre obra e público. Os hits, então, firmaram-se naturalmente.
Esse Tal de Roque Enrow trata de um tema hilário. Veio redondinha para estourar. Agora Só Falta Você avançou mais e se tornou um hino.
– Fiz a música, a linha melódica e a metade da letra. Fui para a casa da Rita e fechamos juntos – lembra Carlini. – O grande hit de nossa parceria é essa canção.
Porém, em matéria de sucesso e alcance, nenhuma outra bateu Ovelha Negra. Os versos, incluindo o refrão, são imagéticos. E há a irresistível levada folk pop. É uma das melhores baladas do rock brasileiro. Mais do que isso, até, virou a síntese óbvia da persona artística de Rita Lee.
O que talvez passe batido seja o protagonismo do solo de guitarra. Acontece que o fraseado simples e melódico é, sem dúvida, a cereja desse bolo. Dá elegância e identidade à composição.
– O final de Ovelha Negra ficava só na base. Faltava alguma coisa ali. Pensei tanto nisso que sonhei com o solo e acordei assoviando aquilo – comenta Carlini.
Entretanto, como o disco já estava em fase de mixagem, o guitarrista precisou de bastante persistência e alguma paciência para convencer com seu adendo. Após inúmeras tentativas frustradas, eis que Andy Mills se interessou:
– Ele me falou: “Você tinha dito algo sobre um solo para Ovelha Negra? Então, mostre aí”. Peguei minha guitarra e toquei. Quando acabou, todo mundo tinha gostado.
A intenção era gravar novamente, uma versão oficial, mas o inglês limou a possibilidade sem dó.
– Lembro dele tirando a fita do gravador, enfiando numa caixa, guardando na prateleira e dizendo: “É isso aí, e fim!” – completa Carlini, que veria a vida mudar justamente por conta daquele take único guardado a sete chaves.
– Nos shows, quando chegava na hora do solo, as pessoas assoviavam junto. Um ginásio com 10 mil espectadores, e eu podia decepcionar ou fazer todos irem à loucura. Aquilo se tornou especial e me ensinou muito como músico e homem. Fiz um milhão de solos depois, mas o de Ovelha Negra foi marcante. É muito valioso.
"O melhor do rock nacional"
– Ovelha Negra arrebentou naquele momento, tocava a toda hora – comenta o ex-craque dos gramados Walter Casagrande Júnior, um ávido roqueiro.
Ele era adolescente quando Fruto Proibido saiu e estourou.
– Acho esse o melhor disco de rock and roll brasileiro de todos os tempos! Pirataria, Agora Só Falta Você, Cartão Postal, todas as músicas são fortes. Virou um clássico – ele complementa.
Assim como Casagrande, um sem-número de pessoas digeriu vorazmente o sucesso de Rita Lee & Tutti Frutti. Rádios executavam os hits à exaustão, o que impulsionou uma extensa turnê pelo país – inédita para os padrões do rock nacional de então.
O registro também virou uma referência para futuros roqueiros de estrada. O ex-Barão Vermelho Roberto Frejat debruçou-se sobre riffs, solos e refrãos do material.
– É diferente de tudo o que se gravava de rock brasileiro – diz.
Para ele, o álbum veio como um divisor de águas:
– Depois, tudo ficou diferente. Quase toda a banda em que eu tocava, até antes do Barão, tinha Agora Só Falta Você no repertório. Esse disco ficará na memória sempre como uma coisa maravilhosa, e o Carlini é um dos grandes, um mestre.
Clássico que é clássico jamais envelhece. Mais que um gatilho de nostalgia, Fruto Proibido permanece essencial à biografia de Rita Lee e uma importante baliza na trajetória de Luiz Carlini.
– Fiz o disco sem pensar no que iria representar ou se o solo de Ovelha Negra ficaria famoso. O que valia era um guitarrista iniciante, empolgado, tocando tudo o que podia, sonhando com aquilo, completamente envolvido – finaliza Carlini, um genuíno guitar hero.
O disco
- Após sair dos Mutantes, em 1972, Rita Lee deu início à carreira solo, que só engrenou, de fato, quando passou a trabalhar acompanhada da banda Tutti Frutti.
- Fruto Proibido (nove faixas, 1975), o segundo álbum dessa parceria, foi incluído em diversas listas de melhores discos do rock brasileiro de todos os tempos e é apontado como um dos primeiros sucessos do gênero no país – de crítica e de público. É considerado por músicos e pesquisadores uma das referências para o movimento do rock nacional dos anos 1980, que alcançou grande popularidade no país.
- O hoje escritor Paulo Coelho é compositor, com a cantora, de três músicas de Fruto Proibido, e Luiz Carlini, além de responsável por solos como o de Ovelha Negra, assina a composição de Agora só Falta Você junto a ela.
- A formação oficial da Tutti Frutti em Fruto Proibido conta, ainda, com Lee Marcucci (baixo) e Franklin Paolillo (bateria). A banda acompanhou Rita até 1978, época em que a cantora deu início à parceria com o guitarrista Roberto de Carvalho.