Um Auditório Araújo Vianna lotado. Com todas as cadeiras ocupadas e gente em pé, formando um caldeirão poucas vezes visto no espaço cultural. E, mesmo tendo mais de 4,2 mil pessoas presentes, era possível ouvir todas as vozes em uníssono:
"Vento negro, campo afora / Vai correr / Quem vai embora tem que saber / É viração"
Foi um misto de emoções na hora em que tocou Vento Negro, a música de abertura. As palavras saíam de algumas pessoas acompanhadas de um sorriso de satisfação. De outras, eram projetadas de maneira embargada, ao mesmo tempo em que lágrimas tomavam conta dos olhos. Todos, porém, cantando a plenos pulmões.
Todo este cenário foi ocasionado pelo reencontro do Almôndegas, grupo que fez, nesta sexta-feira (24), um show histórico em Porto Alegre, 44 anos depois de ter se desfeito. Em todo este tempo, eles haviam feito apenas um outro show de reencontro — em 1990, marcando os 15 anos do primeiro disco, lançado em 1975. Ou seja, a expectativa para esta apresentação estava nas alturas.
E, também nas alturas, ficaram os fãs. O show começou às 21h16min, acompanhado de uma longa salva de palmas e gritos eufóricos — estes dois elementos aparecerem depois de cada música. Mas foi logo com a canção de abertura que o público embarcou em uma viagem no tempo, completamente em transe, olhando para o palco como se fosse uma miragem.
Durante Vento Negro, viu-se repetir na plateia pessoas mostrando os braços para as outras:
— Olha aqui, tô toda arrepiada!
Logo depois da apresentação de abertura, Kleiton, que integra a banda com o irmão Kledir, Quico, Zé Flávio, João Baptista e Gilnei, falou ao público, emocionado:
— A gente não pode chorar, porque, se a gente chorar, não vamos conseguir cantar.
E, depois de reforçar que sentiu que o tempo não passou e que as canções do Almôndegas, com mais de 50 anos, seguem atuais, disse:
— Bem-vindos aos anos 70!
Houve, então, um desfile de hits atemporais, com melodias suaves e dando espaço para todos os seis membros brilharem também individualmente, com solos de seus instrumentos e, também, soltando a voz. Eles entregaram para o público sorrisos e bom humor, demonstrando uma alegria genuína de estarem vivendo aquele momento.
E tudo isso foi entrelaçado com histórias curiosas sobre a banda, que os próprios integrantes contaram. Uma delas, arrancou risos do público. Nela, Kledir e Gilnei relembraram como foi o momento em que começaram a compor a música Almôndegas, nos anos 1970.
— Não lembro da metade das histórias que contam sobre mim — brincou.
Mas esta história, em especial, ele recordava. Em Santa Catarina, depois de fumarem uns "palheiros", saíram os dois a caminhar, até que encontraram uma vaca e decidiram fazer uma homenagem para o animal, prevendo o triste fim do mesmo.
— Fizemos uma ópera. Foram três horas cantando para a vaca. Ela já estava cansada. Foi então que a gente decidiu terminar, nos abraçamos no pescoço da vaca e foi aí que surgiu o refrão "nóis semo umas almôndegas". E foi só isso que ficou na versão final — relembrou Gilnei, aos risos.
A plateia também entrou no clima romântico, com Até Não Mais. Todos os presentes, claro, cantando junto com o grupo. No anúncio de Androginismo, aplausos dos presentes e Kledir celebrando que a canção foi redescoberta décadas depois, pelo público LGBTQIA+:
— Nos enche de alegria, porque mostra que o mundo vai avançando, com leveza.
Alguns pequenos erros aconteceram, inclusive, ressaltados por Kleiton, que entrou errado em Haragana. A plateia pouco se importou. Afinal, completamente compreensível, visto que o grupo estava afastado desde 1990.
A pseudossaideira foi Canção da Meia-Noite, finalizada às 22h29min. Os artistas caminharam até a ponta do palco, onde foram ovacionados por um público que já estava de pé e boa parte aglomerado nas grades de proteção. Eles se despediram, mas, com os pedidos de "mais um" e "volta, volta", retornaram e entregaram dois bis: Sombra Fresca e Rock no Quintal e Almôndegas.
Seria um final bem divertido, com eles saindo de cena após entoarem "nóis semo umas almôndegas". E eles, de fato, deixaram o palco. Eram as duas músicas planejadas para o bis. Depois, novamente efusivamente aplaudidos, o público não arredou o pé. Queria mais. E o Almôndegas entregou. Voltou novamente ao palco e apresentou, novamente, Vento Negro.
A reação da plateia foi ainda mais poderosa, cantando toda a letra com o grupo, em completa conexão e emoção. De fato, foi o final apoteótico de uma noite que vai ficar na memória dos milhares de fãs presentes e, certamente, dos próprios músicos. Mas ela não será a única. Kledir, no palco, anunciou:
— Faremos um show de volta, ainda neste ano, aqui no Auditório Araújo Vianna!
A frase foi o bastante para levar o público ao delírio, celebrando o retorno da banda que marcou os anos 1970 para sempre no coração dos gaúchos. O show se encerrou às 22h44min, com efusivos aplausos.
Almôndegamaníacos
Rogério Soares, 61 anos, fotógrafo e jornalista, estava com a sua câmera em punhos. Queria fotografar para a posteridade este reencontro histórico. Afinal, ele mesmo se classifica como um "almôndegamaníaco". O grupo, segundo ele, fez parte de sua juventude. Ele conheceu a banda com 16 anos e comprou o primeiro disco logo no lançamento, em 1975.
E ele passou a acompanhar a banda sempre que podia, fosse em Porto Alegre ou no Litoral, além de ter na coleção todos os álbuns do grupo.
— E todos comprados na época, com muito orgulho — pontua.
Rogério ainda recorda que esteve presente no último show do grupo, em 1979. E, de lá, conseguiu um cartaz autografado, que ele ainda tem guardado. Porém, não levou nesta noite de reencontro.
— O papel tem mais de mais de 40 anos. Se eu inventasse de trazer, ia se desmanchar — disse, aos risos.
E ele reforça que o sucesso deste reencontro se deve aos instrumentistas de primeira linha que formam a banda, bem como o discurso urbano que o Almôndegas inaugurou no Estado, na década de 1970, fazendo a ligação de Porto Alegre com Interior.
Nas cadeiras, esperando pelo começo do show, também estava Simone Barros, agente socioeducacional de 52 anos. Ela, que estava ao lado do filho, Moustapha Gabriel Barros, de 22, disse que levou o herdeiro ao show para apresentar o grupo que deu origem a Kleiton e Kledir, dupla de quem ela sempre foi fã.
— Eles são parte da minha infância e adolescência. Eu sempre fui apaixonada por Kleiton e Kledir e, quando descobri que eles surgiram do Almôndegas, fui buscar saber mais e virei fã e, quando fiquei sabendo desse show, logo quis vir — contou.
Mesmo com um público majoritariamente mais velho no Auditório Araújo Vianna, alguns jovens também estavam presentes. Dois exemplos são Maria Luísa Nolasco, psicóloga de 22 anos, e o namorado, Gabriel José de Almeida, estudante de história, de 23 anos. Eles estavam ali por serem fãs da banda desde o momento em que ouviram as músicas pela primeira vez.
— Quando eu descobri, foi uma coisa muito disruptiva. Porque a música gaúcha, o nativismo, o tradicionalismo, sempre foi uma coisa mais dura, com alguns preconceitos. E eles subvertem isso. Me encontrei dentro da música gaúcha ouvindo eles. Mudaram a minha relação com o Rio Grande do Sul. São os tropicalistas do Estado — explica Maria Luísa.
Gabriel complementou:
— Eu curto no Almôndegas o mesmo que o pessoal das antigas curtia, esse lance de misturar o rock com o tradicionalismo. É transcendental. E acho que o Almôndegas é sempre moderno.
Neste sábado (25), o grupo faz outra apresentação, dessa vez em Pelotas, no Theatro Guarany, também às 21h. Os poucos ingressos restantes podem ser adquiridos na plataforma Sympla.
O setlist da banda nesta sexta-feira:
- Vento Negro
- Amargo
- Em Palpos de Aranha
- Amor Caipira e Trouxa das Minas Gerais
- Daisy, My Love
- Gô
- Clô
- Mantra
- Alô, Buenas
- Até Não Mais
- Elevador
- Androginismo
- Feiticeira
- Circo de Marionetes
- Piquete do Caveira
- Haragana
- Canção da Meia-Noite
- Sombra Fresca e Rock no Quintal
- Almôndegas
- Vento Negro