Os ruídos ouvidos desde um imóvel do bairro Glória, zona sul de Porto Alegre, em nada se parecem com os registrados na História. Não se veem mais festas e bandas musicais no chalé que, quase em silêncio, se deteriora na altura do número 220 da Avenida Sergipe.
Esse endereço colocou o Rio Grande do Sul em um seleto top 4: com a fábrica Casa A Electrica (grafia da época), apenas a capital gaúcha e outras três cidades no mundo possuíam maquinário capaz de gravar as músicas interpretadas pelos conjuntos no início do século 20. Segunda em toda a América Latina a prensar discos, a indústria do Estado tinha ainda a marca de pioneira a montar gramofones, até então importados e inacessíveis à população menos abastada – o equipamento podia custar três salários mínimos, dependendo do modelo escolhido.
É como uma milonga melancólica que o prédio inaugurado em 1º de agosto de 1914, com as honras do quinteto da Brigada Militar, sucumbe ao tempo.
– Não vai resistir, logo cai – aposta a vizinha Leci Jantsch, 63 anos.
Listada como patrimônio do município em 1996, a edificação nunca foi recuperada. Esteve no centro de diversas batalhas judiciais sobre quem deve zelar pelo imóvel, o que pode fazer de seu futuro a ruína – sem metáforas, pois a estrutura perde capacidade de reconstrução a cada liminar contestada.
Elaborado há 10 anos, o projeto que buscava a recuperação do espaço jamais saiu do papel. Entre amigos e admiradores, uma mobilização quer manter o passado vivo no presente. Na Serra, até uma réplica de menor esmero arquitetônico foi erguida e é mantida, com dificuldades.
Mas o que faz da Casa A Electrica tão importante? A história é longa.
Tudo se deu na então periferia de Porto Alegre, que entrava os anos 1900 com pouco mais de 100 mil habitantes: os primeiros estúdios, a reunião de artistas tocando para uma buzina gigante de captação de áudio e a transformação desse processo em um compacto com os sons interpretados – em grande parte com o selo Disco Gaúcho. A fábrica de discos porto-alegrense só tinha concorrência, na América Latina, da carioca Casa Edison, inaugurada dois anos antes, em 1912.
Um feito é digno de orgulho especial: a distribuição em série dos tangos El Chamuyo e El Desalojo, produzidos integralmente n’A Electrica. A gravação do músico Don Francisco Canaro, uruguaio radicado em Buenos Aires conhecido como Rey del Tango, rendeu destaque no maior jornal da Argentina, El Clarín, com a manchete “¿Brasil grabó el primer tango?”.
A questão é que, antes da Primeira Guerra Mundial, os artistas argentinos gravavam em seu território, mas faltava a eles a possibilidade de reproduzir os registros. Sem conhecer as duas fábricas do Brasil, enviavam as chapas para a Europa. O Rio Grande do Sul atravessou essa rota com o advento da guerra – quando navios que levavam as matrizes a Itália e Alemanha eram bombardeados.
Músico e pesquisador, Arthur de Faria apresenta, em Porto Alegre, uma Biografia Musical (Arquipélago, 2021), uma forma de ver o ineditismo do tango da Casa A Electrica: uma espécie de Mercosul precoce. “As gravações de Canaro resultaram no primeiro tango tocado por argentinos a ser gravado e prensado na América Latina”, destaca no texto do livro.
A confusão, recorda Arthur, começou a partir de interpretações de estudos de Paixão Côrtes. Em 1975, o folclorista apresentou a história d’A Electrica no 1º Encontro de Pesquisadores da Música Popular Brasileira.
A existência da fábrica havia caído no esquecimento, e o imóvel era usado como depósito, com a ferragem servindo de pote de comida para galinhas, como descreve o pesquisador. Em 1984, Côrtes revelou que os primeiros tangos com tiragem própria confeccionados na América Latina eram as canções citadas, causando alvoroço diplomático – entre o pioneirismo de prensar no continente e ter o primeiro registro argentino, há certa distância.
– A revelação foi mal interpretada: os jornalistas não entenderam, ou decidiram fazer aquela tão irresponsável quanto clássica simplificação – define Arthur.
E pondera:
– Ainda é um feito, mas jamais daria manchete no Clarín.
A Electrica chegou a ter 41 funcionários no auge e, enquanto operou, foi responsável por 3,5 mil lançamentos – média de 30 títulos por mês. Com a urbanização concentrada no entorno da Praça da Matriz e em arrabaldes do Centro, o atual bairro Glória, então conhecido como Arraial do Teresópolis, era uma região rural.
O chalé, assim, transformou-se em cenário de grandes “festas-dormitório”, que duravam dias. Pela dificuldade de deslocamento, os convidados dormiam na chácara, em meio ao bosque, jardins, pomar, quadras de esporte e cancha de bocha.
Lugar de extravagâncias
A história da casa do “Theresopolis”, como aponta um anúncio de 1914 deixado como herança por Paixão Côrtes, é ainda menos pomposa do que a de seu fundador: Saverio Leonetti, nascido em 16 de outubro de 1875 na Calábria, sul da Itália. Na virada do século, ele chegou a Porto Alegre, arregimentando em seguida seus três irmãos, Emílio, Carlo e Achille, para, em 1908, inaugurar uma loja que revendia cartões-postais, brinquedos e também gramofones e agulhas. No ano de 1911, os discos passaram a ser o foco da empresa, já com o nome A Electrica – “casa” era um termo comumente empregado para definir esse tipo de comércio.
Os altos preços dos compactos importados e o potencial do mercado motivaram os empreendedores a ir à Alemanha comprar o que de mais moderno existia para produzi-los. Segundo Côrtes, a prensa usava duas lâminas de ferro que, ao se encontrarem, geravam um peso de 10 toneladas.
No meio, a matriz do vinil. Desse original, faziam-se 50 cópias. Caso precisasse de uma maior tiragem, era necessário reunir novamente a banda. E gravar de novo. “Saverio Leonetti começou um novo momento, de gravação e prensagem aqui. E teve importância enorme nesse intercâmbio”, destaca Côrtes em entrevista para o documentário acasaeletrica.doc (2010), de Gustavo Fogaça, sobre os negócios que se estabeleceram com os argentinos.
– Depois que a Casa fechou, só se foi gravar disco na cidade nos anos 1970. Porto Alegre ficou quase meio século no ostracismo. Um gap histórico – complementa Fogaça.
A aventura também foi exposta em pesquisas acadêmicas, no filme ficcional A Casa Elétrica (também de Fogaça, 2012) e um romance. O diretor a conheceu por meio do sobrinho-neto do italiano, Geraldo Leonetti, em 1998.
– Ele tinha uma fascinação contagiante, que me pegou – resume Fogaça, sobre Geraldo.
Ele define Saverio Leonetti como um sujeito à frente do seu tempo:
– O cara fazia ações de marketing em uma época em que não existia o conceito de marketing.
Leonetti era adepto a extravagâncias. Isso somado à má administração dos negócios fez com que a fábrica fosse fechada pela Junta Distrital da Vara Comercial de Porto Alegre em 1924. E todo o maquinário e as matrizes acabaram confiscados pelo órgão municipal.
– Eu não diria má gestão, porque ele se divertiu muito. Má gestão empresarial e boa gestão de vida – se diverte Arthur de Faria.
Leonetti morreu em Niterói (RJ), em 1952. Os dois filmes de Fogaça estão disponíveis no YouTube.
Do glamour à degradação
Durante os últimos meses, ZH fez plantões em frente ao extenso muro com dois portões de acesso ao terreno. Da rua, é possível ver a vegetação alta, sem podas, junto ao imóvel, cobrindo o teto com inúmeras falhas e rupturas.
Com autorização dos atuais mandatários, foi permitido o acesso, em 27 de dezembro. Ao cruzar a calçada, o visitante depara com o arco de pedras na varanda, salão principal com janelas de madeira e telhado de barro.
No topo da fachada ficou quase impossível identificar a lira talhada no concreto, símbolo do edifício. Ao lado do instrumento, dois círculos representam os discos.
Uma das cenas mais tristes para quem admira a história da música gaúcha é vista na lateral: a livre ação da natureza, em um longo tempo sem intervenções, fez nascer e se expandir uma figueira agarrada à parede. As raízes vão da base à marquise, derrubando parte dos tijolos no caminho. Um grande bloco de cupins se estabeleceu nesse mesmo canto, consumindo por completo uma das aberturas.
Fotos feitas para embasar a proposta de restauro, 10 anos atrás, mostram o cupinzeiro ainda pequeno, algumas raízes se formando e a janela com as madeiras ainda em processo inicial de degradação. A imponência atual da árvore, que tanto cresceu em uma década, impressiona o arquiteto Lucas Volpatto, do Studio 1 Arquitetura, ao ver as imagens atuais do terreno.
Uma cerca foi instalada para evitar acesso em alguns pontos, pelo risco de desabamento. A tela tem falhas, e o cinza convencional do arame é decorado por uma calça e uma toalha que alguém ali estendeu, com o marrom de tábuas e esquadrias não consumidas pelo descaso no pano de fundo.
O forro apodreceu, mas ainda conserva lambrequins pendentes na madeira – um estilo muito visto em varandas de chalés italianos e suíços, segundo Volpatto. Unidos, os moldes lembram o popular sinal de coração feito com a mão, ao aproximar polegares e indicadores opostos.
No interior, há vigas caídas e o piso igualmente comprometido. Em outra lateral, o telhado sucumbiu, dando um efeito de onda, do centro até a janela. Os fundos da edificação exibem uma rachadura. Curiosamente, duas máquinas de videokê são guardadas na área por onde passaram centenas de conjuntos musicais, há um século.
Nesse ritmo, a própria reconstrução pode ser inviabilizada, comenta Volpatto:
– Pode-se chegar a um estágio irreversível de ruínas. E aí precisaríamos reavaliar o projeto. O mundo inteiro tem ruínas que se tornaram monumentos. A região missioneira é um exemplo.
O arquiteto é cuidadoso ao levantar a possibilidade da manutenção de eventuais ruínas: afirma que o imóvel tem seus méritos reconhecidos a tal ponto de ter sido declarado patrimônio histórico, diz que foram feitos investimentos na planta de recuperação proposta, mas não deixa de levar em conta o que chama de “equação complexa” de um imóvel que não é de propriedade pública.
– Tem um proprietário, a prefeitura não pode tirar dinheiro de impostos ou da saúde e da educação e investir em uma casa privada – adverte ele, que também é Presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico.
Nas maquetes projetadas em 2010, é possível ver pilares de pedra nas sacadas laterais, assim como uma das pilastras originais ainda em pé no terreno. O edifício tem tons pastéis e, no topo, a nomenclatura do período de funcionamento seria recuperada: Fábrica de Discos Saverio Leonetti. Um casal dançando tango ilustra um dos auges da história e do pioneirismo da Porto Alegre de outros tempos – um valor imaterial.
Ordem judicial de reforma
Na Avenida Sergipe, as memórias da Casa A Electrica pouco ressoam. Persiste, em alguns moradores mais antigos, a lembrança da ocupação do terreno por uma prestadora de serviços, quando o imóvel serviu também de residência.
– Lembro que era uma casa amarela, bem bonita. Eu subia e descia de bicicleta aquilo ali. Dá uma coisa ruim ver ela assim, atirada – recorda Ricardo Lang, 57 anos.
– Tinha curiosidade, mas nunca entrei ali. Dizem que tem uns maquinários antigos – afirma o vigilante Jorge Luís Paixão, 60 anos, sobre a sucata já há tempos removida, uma lenda urbana atual.
Nas três décadas desde que a antiga gravadora foi tombada, houve “abraços” simbólicos da comunidade e mobilizações buscando acelerar o restauro. Administrador da página no Facebook Amigos da Casa Elétrica, Ricardo Eckert demonstra desânimo com o insucesso nas tentativas de acelerar o restauro.
– Já perdi as contas das reuniões com prefeitos e vices, comissões na Câmara de Vereadores, visitas ao Ministério Público. É um patrimônio fantástico, e já vimos revitalização em pontes e viadutos que não estavam caindo com valores maiores do que era necessário na Casa A Electrica – defende Eckert.
Há sete anos, ZH publicava reportagem na qual os então gestores da Memória Cultural da prefeitura informavam que R$ 1,5 milhão estavam previstos no orçamento da obra. O valor se desatualizou.
Até 5 de outubro de 2022, vigorava uma liminar de conservação do imóvel, mas o disco virou outra vez, com a determinação da 21ª Câmara Cível do Rio Grande do Sul: a partir de uma ação do Ministério Público do Estado, movida em 2011, a prefeitura foi condenada a efetuar medidas emergenciais. O Executivo já havia questionado tal decisão através de recursos, mas perdeu a última apelação por unanimidade no ano passado.
“A sentença recorrida já condenou todos os réus, solidariamente, à obrigação de efetuar medidas emergenciais e necessárias à conservação do imóvel tombado”, diz parte do acórdão.
O documento define que a Casa A Electrica “possui inegável valor histórico e cultural”, cita o processo administrativo de seu tombamento e afirma que, “embora tenha tomado todas as medidas, notificando os proprietários para a manutenção do prédio, desde 2004 nenhuma ação foi realizada, continuando o prédio de valor histórico se deteriorando e se descaracterizando, demonstrando o completo descaso e atualmente o abandono do imóvel pelos proprietários”.
A decisão estabelece que seja realizado “um cronograma físico-financeiro de execução”, afirma que “nasce para o município o dever de tomar as medidas de conservação e recuperação” e que “esse mesmo julgado condena os proprietários do imóvel a indenizar o município” pelos custos de tal intervenção. Apesar de não ser a proprietária, a prefeitura se tornou ré por omissão ao não promover a conservação de um bem tombado. Herdeiros e a antiga transportadora que ocupava o terreno também estão entre os condenados.
A mais recente decisão reacende a esperança de Eckert, que voltou a bater à porta de fontes ligadas ao município. Diversas propostas de reabertura do espaço já foram apresentadas, entre as quais a criação de um museu, a montagem de estúdios de gravação e a própria ocupação do imóvel por órgãos ligados à Secretaria Municipal da Cultura.
Procurada pela reportagem, a Procuradoria-Geral do Município afirmou que vai recorrer da condenação na Justiça, pois entende que o restauro é de responsabilidade dos proprietários do imóvel. A família que consta como ré no processo foi localizada, disse que iria avaliar o pedido de entrevista, mas, ao fim, apenas afirmou que não tem mais deliberação sobre o imóvel e, por isso, preferiu não se manifestar.