É de verso em verso que a história do Rio Grande do Sul vem sendo narrada ao longo dos tempos, através da arte milenar do rimar improvisado. Há registros dela na Bíblia, na Grécia Antiga, nas cruzadas da Idade Média e na chegada dos primeiros portugueses ao Brasil. Espalhou-se por diferentes regiões do país, mas foi nos pagos do Sul que ganhou a cadência de ritmos como o chote e a milonga, métrica e regras próprias, acompanhamento de gaita e, para marcar de vez a exclusividade, o nome de trova. Trova gaúcha, para não perder a essência do bairrismo, ainda que nestes moldes ela só exista mesmo aqui.
O primeiro grande trovador — como é chamado quem pratica a trova — de que se tem registro é Pedro Muniz Fagundes, o Pedro Canga, que no século 19 cantava em versos aquilo que presenciava na Revolução Farroupilha. Mas foi em meados dos anos 1950 que a trova viveu sua Era de Ouro no Rio Grande do Sul. Foi quando começaram a despontar nomes como Tereco, Garoto de Ouro, Portela Delavi, Teixeirinha e Gildo de Freitas, considerado o mais notório trovador que já se viu no Rio Grande do Sul.
Conforme o jornalista e colunista de GZH Juarez Fonseca, autor da biografia Gildo de Freitas - O Rei dos Trovadores, esta Era de Ouro da trova se deu pela soma de alguns fatores. Primeiro, porque naquela época se tinha Gildo de Freitas, e não é todo dia que um Gildo de Freitas aparece por aí — até agora, não apareceu ninguém passível de comparação. Segundo, porque a música regionalista também vivia uma Era de Ouro, com direito a programas de auditório dedicados ao gênero musical ocupando a grade de diferentes rádios. Um deles era o Grande Rodeio Coringa, da Rádio Farroupilha, responsável por formar toda uma geração de amantes da trova.
— O programa terminava sempre com um concurso de trovas, com dois trovadores se digladiando. Quando digo "se digladiando", é porque essa coisa da trova como disputa era estimulada. O público gostava disso, era como um Gre-Nal. E o Gildo de Freitas ganhava todas, porque era o maior. Chegou um ponto em que tiraram ele das disputas, porque ganhava sempre. E ganhava na categoria, não na agressividade. Era o trovador perfeito. Falava da sua vida, das suas vivências, daquilo que via, e se encantava com a própria trova — explica Juarez.
Foi justamente ouvindo Gildo de Freitas trovar no Grande Rodeio Coringa que, na zona rural do município de Vicente Dutra, o agricultor Abdenago Nunes de Oliveira, já falecido, pegou gosto pela trova. Nunca trovou a valer — tinha mais jeito para a música do que para o improviso —, mas sonhava que um dos filhos virasse trovador. Dois deles, Jadir e Celso Oliveira, levaram a sério o desejo do pai. Os dois são os pioneiros da linhagem tradicional de trovadores da família Oliveira, que, já em sua segunda geração, ganhou o reforço de Jadir Filho, o Jadirzinho, filho de Jadir Oliveira (confira, no topo desta matéria, vídeo com um desafio de trova feito com a família Oliveira, em Mi Maior de Gavetão).
— O pai gostava muito de escutar o Rodeio Coringa para ouvir os trovadores se apresentando. Quando crescemos, começamos a brincar de improviso, em casa mesmo, entre os irmãos. Depois, vieram os concursos. Eu fui um dos primeiros a concorrer, depois veio o Celso. O Jadir Filho com cinco anos de idade já trovava, com seis foi campeão da Fenatrova, em Passo Fundo, na categoria para crianças. Então, é uma coisa que vem passando de pai para filho, que está no nosso sangue — conta Jadir.
— Comprei a minha primeira bicicleta com o dinheiro dessa Fenatrova. Era uma Monark, conquistada no cabo do verso (risos) — diverte-se Jadirzinho.
Deve ser mesmo coisa de sangue, pois nenhum deles passou por uma instrução formal para se tornar trovador — algo que é característico da trova gaúcha. A arte começou a ser aprendida por Celso e Jadir ao observar um ex-namorado da irmã que era trovador e costumava visitar a casa da família e exibir-se trovando embaixo de um pé de ameixeira — esperto, pois sabia que o sogro gostava de trova. Jadirzinho também pegou o jeito na base da observação, pois desde pequeno acompanhava o pai em rodeios e festivais pelo Estado.
Cada um deles, porém, tem um estilo diferente de trovar. Jadirzinho, apesar de encarar qualquer tema, tem facilidade para a trova de viés humorístico, enquanto o pai, segundo ele, "é mais poeta". Jadir concorda, pois gosta de trovar o amor e a saudade, entre outros temas que são caros também ao gênero literário. Já Celso se considera o mais cru dos três e diz que sua trova "depende do espírito": só consegue fazer boas rimas quando está em um bom dia. Para ele, a linhagem de trovadores da família Oliveira vem evoluindo a cada geração.
— Eu brinco que a trova na nossa família é tipo carro. Eu e o Jadir somos o modelo básico, enquanto o Jadirzinho já vem com computador de bordo e não sei mais o quê (risos). Ele já está anos-luz na nossa frente, tem um refinamento. Eu, hoje em dia, trovo por hobby, mas ele é profissional mesmo — brinca Celso.
O que não muda é a métrica de trova preferida dos Oliveira: o Mi Maior de Gavetão. O formato é mesmo o mais tradicional da trova gaúcha — existem outros, como a Trova de Martelo, onde um trovador completa o final do verso do outro, e a trova Estilo Gildo de Freitas, improvisada em cima de uma melodia cunhada pelo Rei dos Trovadores. O Mi Maior de Gavetão consiste em uma estrofe de seis versos, a chamada sextilha, formada por rimas setessilábicas. É acompanhada por instrumentos em mi maior, geralmente violão e gaita, com a gaita fazendo o movimento conhecido como gavetão — por isso Mi Maior de Gavetão (veja trova neste estilo no vídeo no topo desta matéria).
Mas independentemente da métrica adotada, o segredo, conta Jadir Oliveira, é sempre começar pelo final, por mais estranho que o conselho possa soar.
— Sempre que eu digo que o segredo é fazer de trás para a frente, as pessoas se apavoram (risos). Um verso de trova é como uma viagem. Quando você vai viajar, a primeira coisa que tem que saber é o destino. Com a trova é o mesmo: a primeira coisa em que a gente pensa é como vai terminar. Depois que acha um final forte, aí monta ao resto. Só que tudo isso em segundos (risos) — diz Jadir.
A dificuldade da trova contrasta com o fato de ainda ser vista como algo "menor" dentro das manifestações culturais gauchescas. Tem menos destaque em festivais e é menos difundida nas entidades regionalistas. O trabalho de um trovador costuma ser menos reconhecido que o de um cantor, por exemplo, conforme é denunciado pelos trovadores Oliveira. Na opinião deles, algo que pode estar relacionado a um estigma que se criou sobre a arte de trovar.
— Antigamente, a trova tinha a conotação de ser algo feito por pessoas que se alcoolizavam, que saíam improvisando porque tinham bebido. A responsabilidade da nossa geração é mudar essa visão sobre a trova, mostrar que a trova é uma arte, é algo cultural. O verso improvisado é uma das artes mais primitivas que existem, pois antigamente não tinha escrita, somente a fala. Por isso, nós temos muito respeito pela trova — opina Jadir.
Celso completa:
— Ninguém nunca vai ver um Oliveira tomando canha antes de um concurso, por exemplo. A gente leva a trova muito a sério. É como um tesouro, um dom que recebemos.
Para Juarez Fonseca, incide ainda o fato de a própria música regionalista ter perdido seu espaço nos últimos anos, em um movimento que começou a ser percebido em meados de 1960. Foi quando começaram a explodir artistas nacionais como os da Tropicália e bandas de rock como os Beatles, que acabaram por "roubar a cena". O cenário só mudou com a chegada dos festivais, mas estes acabaram por deixar de lado a arte de trovar, por vezes tida como "coisa de grosso".
— Ali pelos anos 1960, a música regional e, consequentemente, a trova, perderam o espaço de rádio que tinham. A manifestação regional só foi readquirir sua relevância com a chegada dos festivais de música nativista. Só que a Califórnia da Canção Nativa, por exemplo, surge em 1971 como uma tentativa de enobrecer a música regional gaúcha. Não sei se enobrecer é a palavra exata, mas, digamos assim, não era um espaço para a música de "grosso", como faziam Teixeirinha e Gildo de Freitas. Tanto é que nenhum desses grandes festivais levou Gildo de Freitas ou Teixeirinha para fazer show. Com isso, a trova também foi jogada para escanteio, e acabou ficando em guetos — explica Juarez.
Apesar do cenário difícil, trovadores como os da família Oliveira resistem em defesa da trova gaúcha. Querem mostrar que ser "coisa de grosso" está longe de ser um defeito. Afinal, a trova é mesmo a poesia do grosso. E Jadirzinho, que ainda não tem filhos mas assumiu para si a missão de continuar a linhagem de trovadores, torce para que, daqui para a frente, a trova da família seja também "coisa de grossa".
— Já pensou se vem uma guriazinha trovadora? — sonha.