A série Ao Pé da Letra explora músicas emblemáticas produzidas por artistas do Rio Grande do Sul. Nesta edição tributo, o projeto foca em clássicos regionalistas de artistas que já partiram. O segundo episódio da nova temporada aborda Eu Reconheço que Sou um Grosso, de Gildo de Freitas.
Quando Gildo de Freitas escreveu Eu Reconheço que Sou um Grosso, ele não estava reafirmando uma postura indecorosa. Na faixa do disco que leva o nome do cantor e compositor, lançado em 1979, tampouco havia uma ode à ofensa. Gildo estava contando a história de sua vida. E compartilhando seus orgulhos e visões tradicionalistas.
Natural do bairro Passo d’Areia, de Porto Alegre, Leovegildo José de Freitas viveu entre 19 de junho de 1919 e 4 de dezembro de 1982. Ao longo de 63 anos, ele teve uma trajetória cinematográfica: fez todo tipo de trabalho braçal, se envolveu em brigas e confusões, esteve preso quase 40 vezes, circulou por diferentes rincões do Estado — às vezes, fugindo da polícia —, enfim, uma vida que renderia um filme de ação. Mas, essencialmente, a música conduziu sua existência.
Primeiro, Gildo se consolidou como o maior trovador que o Rio Grande do Sul já teve — era imbatível, ninguém o vencia. Porém, ele ampliou mesmo seu público quando começou a gravar seus versos, que resultaram em canções seminais do cancioneiro gaúcho, como a rancheira valseada Eu Reconheço que Sou um Grosso.
Nela, há duas partes, como se fossem duas canções. Na primeira, Gildo canta em três estrofes a história de sua vida. Aliás, embora abordasse de todos os temas possíveis em seu repertório — do cabaré à religião; dos jogos de azar a doenças — ele era um cantor extremamente autobiográfico. “Eu trabalhava, ajudava meus pais/ Sempre levei a vida de peão”, cita o cantor na música, rememorando a própria trajetória. Assim como quando relata “Eu aprendi a dançar aos domingos/ Sentindo o cheiro do pó do galpão”.
Ao reconhecer-se como “grosso”, Gildo está se referindo ao tratamento pejorativo dado ao homem campeiro. Juarez Fonseca, colunista de GZH e autor da biografia Gildo de Freitas: o Rei dos Trovadores, frisa que o sujeito que vestia bombacha e bota nos centros urbanos, na metade do século 20, podia ser alvo de deboche. Então, o compositor dá uma caráter positivo à expressão “grosso”.
— Daí vem a genialidade do Gildo: “Mas sei tratar a qualquer cidadão/ Até representa que eu tenho cultura”. Assume a definição de grosso. Mas garante que sabe tratar bem as pessoas — explica Juarez. — A música apresenta também uma noção que como ele se via — acrescenta.
Já a parte final de Eu Reconheço que Sou um Grosso é alvo de controvérsia. Embora expresse seu orgulho pelo CTG e convoque os jovens aos centros ("Ô mocidade associem com a gente/ Vá no CTG e leve um documento”), há versos que podem soar questionáveis para a contemporaneidade (“Os trajes das moças não são à vontade/ E se, por acaso, um perverso sujeito/ Querer fazer uso e abusos de agora/ Já entra o machismo impondo respeito/ E arranca o perverso em seguida pra fora”). A banda Rock de Galpão, por exemplo, incluiu uma versão blues de Eu Reconheço que Sou um Grosso em seu repertório, porém não canta a última parte da música.
Para Juarez, é necessária uma contextualização dos versos. Primeiramente, o biógrafo ressalta que Gildo está exaltando o CTG como um ambiente para pessoas como ele (“grosso”), mas que também é um local de gente boa (“Vá ver o respeito dessa sociedade”), onde sai “bons casamentos”.
Em relação ao verso que diz “Já entra o machismo impondo respeito”, Juarez defende que havia uma outra conotação para a palavra “machismo”, algo mais a ver com “destemor” ou “virilidade”. Quanto ao trecho que diz “Os trajes das moças não são à vontade”, o biógrafo observa:
— Ele fala dos vestidos das prendas não serem muito confortáveis, porque, de fato, não eram. Naquela época, o vestido de prenda era uma coisa armada, com várias saias por baixo para dar aquele formato arredondado.
Gildo de Seixas?
Ao longo das décadas, Eu Reconheço que Sou um Grosso se tornou uma das canções símbolo do regionalismo gaúcho. O cantor João de Almeida Neto, que já regravou Gildo em algumas oportunidades, aponta que a canção é a típica manifestação poética de seu autor.
— Uma linguagem clara, objetiva, sincera e simples. Expressa seu sentimento de valoração às coisas autênticas e genuínas do RS — avalia.
Tiago Ferraz, vocalista e guitarrista do Rock de Galpão, relaciona a canção a outro grande compositor brasileiro:
— É como se Gildo tivesse feito uma parceria com Raul Seixas para escrever essa letra. Do jeito que a gente canta e interpreta ela, tem algumas frases que ficam até com um ar meio "hiponga".
O cantor, percussionista e compositor Ernesto Fagundes também lembra de Raul ao descrever o legado de Gildo:
— É o Raulzito da música regionalista. Em vez de “toca Raul”, é “toca Gildo”. É aquele cara que está no inconsciente popular do gauchismo. Não existe um galpão de acampamento farroupilha que não toque Gildo de Freitas. Se não tocar durante o mês de setembro, faltou uma trilha sonora naquele acampamento.
Em 2012, Ernesto lançou o disco Histórias de Gildo de Freitas, em que interpreta 12 músicas do Rei dos Trovadores. Uma de suas motivações para gravar o álbum foi o quanto Gildo era requisitado em seu programa Grande Rodeio Farroupilha, da Rádio Farroupilha, ou em acampamentos e apresentações. Entre as faixas do álbum está Eu Reconheço Que Sou um Grosso.
— Ele tinha orgulho de sua simplicidade. Era um trabalhador desde criança, algo que o orgulhava. Como gaúcho do campo, sempre representou uma pessoa educada e respeitadora, como diz na letra — descreve Ernesto.
Eu Reconheço Que Sou Um Grosso
Me chamam de grosso, eu não tiro a razão
Eu reconheço a minha grossura
Mas, sei tratar a qualquer cidadão
Até representa que eu tenho cultura
Eu aprendi na escola do mundo
Não foi falquejado em bancos colegiais
Eu não teve tempo de ser vagabundo
Porque quem trabalha vergonha não faz
Eu trabalhava, ajudava meus pais
Sempre levei a vida de peão
Porque no tempo que eu era rapaz
Qualquer serviço era uma diversão
Lidava no campo cantando pros bichos
Porque pra cantar eu trouxe vocação
Por isso até hoje eu tenho por capricho
De conservar a minha tradição
Eu aprendi a dançar aos domingos
Sentindo o cheiro do pó do galpão
Pedia licença apeiava do pingo
E dizia adeus assim de mão em mão
E quem conhece o sistema antigo
Reclamem por carta se eu estou mentindo
São documentos que eu trago comigo
Porque o respeito eu acho muito lindo
Minha sociedade é o meu CTG
Porque nela enxergo toda a antiguidade
E não se confunda eu explico por que
Os trajes das moças não são à vontade
E se, por acaso, um perverso sujeito
Querer fazer uso e abusos de agora
Já entra o machismo impondo respeito
E arranca o perverso em seguida pra fora
Ô mocidade associem com a gente
Vá no CTG e leve um documento
Vão ver de perto que danças decentes
E que sociedade de bons casamentos
Vá ver a pureza, vá ver alegria
Vá ver o respeito dessa sociedade
Vá ver o encanto das belas gurias
Que possam lhe dar uma felicidade