A série Ao Pé da Letra explora músicas emblemáticas produzidas por artistas do Rio Grande do Sul. Nesta edição tributo, o projeto foca em clássicos regionalistas de artistas que já partiram. O primeiro episódio da nova temporada aborda Querência Amada, de Teixeirinha.
Como se fosse uma regra de etiqueta, quando um artista popular visita o Rio Grande do Sul e quer agradar ao público local, convém tocar e interpretar Querência Amada. A música é uma bola de segurança do show, já que os gaúchos sempre respondem extasiados, cantando junto e vibrando. Algumas vezes, é comum bradarem "Ah, eu sou gaúcho" na sequência, aproveitando o momento de autoexaltação. Thiaguinho, Gusttavo Lima, KLB, Leonardo, Maiara e Maraisa e por aí vai: a lista de versões de Querência Amada em apresentações no Estado é extensa, o que se pode conferir em uma busca do YouTube. Porém, se hoje é um dos hinos informais do RS, a música só foi explodir anos após a morte de quem a criou.
Composta por Teixeirinha, Querência Amada é a segunda faixa do lado A do disco Aliança de Ouro, de 1975. Trata-se de um xote de exaltação ao Rio Grande do Sul, enfatizando a paisagem ("O céu azul do Rio Grande" e "Planície e serra"), personalidades políticas ("Berço de Flores da Cunha/ E de Borges de Medeiros/ Terra de Getúlio Vargas/ Presidente brasileiro"), as mulheres ("Da linda mulher gaúcha/ Beleza da minha terra"), os gaúchos ("Do povo vem o carinho/ Bondade nunca é demais") e até um pouco de autoafirmação ("Sou da geração mais nova/ Poeta bem macho e guapo/ Nas minhas veias escorre/ O sangue herói de farrapo"), além de criar uma imagem divina regionalista ("Deus é gaúcho/ De espora e mango/ Foi maragato ou foi chimango").
Segundo o jornalista Daniel Feix, autor da biografia Teixeirinha: Coração do Brasil, Querência Amada reflete uma parte da persona do cantor e compositor, que incorpora em suas canções a ideia de exaltação da terra, o que inclui locais (Gaúcho de Passo Fundo, Xote Soledade e Capão da Canoa) e personalidades (de Presidente Médici a Ieda Maria Vargas com Miss Universo 63).
— Teixeirinha tem uma afinidade com a música popular, é um grande cantor de bolero, de samba-canção, regionalista, entre outras vertentes. Então, junta tudo isso em um caldeirão, que forma sua persona sui generis. Mesmo assim, ele é bem representativo de um certo tipo de cantor e compositor que surgiu na era de ouro das trovas, entre os anos 1940 e 1960, que tinha essa coisa de exaltar os próprios feitos, não só a própria terra — observa Feix. — Isso foi muito caro para a formação dele.
Querência Amada foi composta em um período de maturidade do artista, em que seu método de criação passou a variar. Feix descreve na biografia que Teixeirinha "escrevia em fluxo de consciência, registrando na ponta da caneta as ideias conforme surgiam em sua cabeça".
Só que além da música (ele lançava pelo menos um disco de inéditas por ano), o cantor também desempenhava outras atividades — como no cinema e com seu próprio programa de rádio, Teixeirinha Amanhece Cantando. Por conta dessas demandas, a partir dos anos 1970, ele passa a sistematizar sua produção artística.
— Teixeirinha enviava as canções para a gravadora, para as pessoas que ele confiava e gravava logo em seguida. Esse era um sistema que fazia a roda girar. Acho que até por isso Querência Amada talvez não tenha feito tanto sucesso naquele ano — explica o biógrafo.
Apesar de ser a canção mais regravada de Teixeirinha e ter se tornado uma das músicas mais populares do regionalismo gaúcho, Querência Amada não foi uma música de trabalho (single) do disco Aliança de Ouro. Não foi uma aposta nem teve maior repercussão em 1975. Para Feix, talvez tenha havido um descompasso com o que a gravadora esperava do Teixeirinha, sem ter se dado conta do potencial que tinha em mãos. Porém, a sistematização do músico também pode ter contribuído para a faixa ter passado despercebida.
— Ele produzia muito e reservava algumas músicas com enorme potencial, mas que acabavam nem estourando porque não dava tempo — diz o jornalista.
Como a canção se popularizou
Duas décadas depois de lançada, Querência Amada estourou. Teixeirinha já havia partido em 4 de dezembro de 1985. Foi na versão de Oswaldir & Carlos Magrão que a canção se popularizou — em especial, com sua levada country e sua introdução com guitarra.
A ex-dupla — hoje cada um segue carreira solo — regravou Querência Amada pela primeira vez enquanto ainda viviam em São Paulo (SP), e a faixa entrou no repertório do disco Velha Gaita (1993), pela gravadora Continental. Os dois estavam na casa de um amigo, que tinha uma coleção de discos de Teixeirinha.
Entre a audição de uma música e outra do artista, Querência Amada surgiu. Carlos Magrão lembrou de seu pai, que costumava ouvir e cantar a canção. Ele recorda que, como estavam longe do Rio Grande do Sul, a música "bateu forte no coração", pela saudade e as coisas que haviam ficado no Estado. Já Oswaldir relata que pegou o violão e anunciou: "Vamos mudar isto aqui".
— Como eu venho de um outro segmento musical, que foi o rock and roll, eu pensei: "Vamos botar um country aí". Fiz aquela levada que está aí até hoje. Fomos felizes no arranjo — assinala Oswaldir.
Os dois voltaram ao Rio Grande do Sul em 1995 e assinaram com a gravadora Acit. No disco lançado no ano seguinte, que leva o nome da dupla, incluíram uma versão mais polida de Querência Amada — pela qual ficaria difundida.
Mas a música também teria um empurrãozinho do esporte: Oswaldir ressalta que o zagueiro Adílson Batista, que jogava pelo Grêmio na época, chegou a cantá-la nos programas esportivos. A faixa também embalou trilhas de reportagens do vitorioso Grêmio de Felipão, campeão brasileiro daquele ano. Associada àquele time, o músico lembra que eles chegaram a dar uma volta em torno do gramado, no Estádio Olímpico, em 1997. Só que a canção transcende o futebol.
— Representa um "up" na nossa carreira — atesta Oswaldir. — Penso eu que pelo arranjo e interpretação que demos a ela, pegou uma notoriedade muito grande. Ultrapassou as fronteiras. Hoje Querência Amada é tocada em Goiás, no Paraná, em Minas Gerais, no Rio, no interior de São Paulo, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, então, nem se fala.
Carlos Magrão corrobora:
— Embora não seja uma letra nossa, Querência Amada ficou muito conhecida pela nossa característica de cantar. O arranjo que a gente trouxe também foi inovador para a época: tiramos a gaita e incluímos uma guitarra country nela. Virou quase uma música country. Demorou um pouco para acontecer, mas quando aconteceu foi sucesso.
A partir da versão de Oswaldir & Carlos Magrão, Querência Amada se consolidou como um dos hinos informais do Rio Grande do Sul, sendo tocada por aqui e por artistas de fora como afago aos gaúchos ou lembrada acima do Mampituba.
— Mesmo fora do Estado, Querência Amada é muito pedida — aponta a cantora regionalista Nair Teresinha. — Ela engrandece o Rio Grande do Sul naquele último refrão que arrepia! Acho que esse é o valor todo que a canção tem, de trazer para a gente a lembrança do RS. Eu tive a experiência de viver em outros Estados e essa música me tocava. Estou para te dizer que vivi no Acre, onde tem muito gaúcho, e a gente se emocionava ouvindo.
Carlos Magrão descreve Querência Amada como uma canção "praticamente perfeita", por falar do "amor pela terra" e exaltar "a coragem e a força de um povo".
— Acredito que seja por isso que a música tenha ganhado uma força fora dos limites. Viajo pelo Brasil e, por onde eu passo, não há um gaúcho que não conheça, admire e a cante com toda a força. Acredito que seja uma representação do gauchismo, da cultura de um povo — sublinha. — Basicamente é o amor cantando em forma de versos pelo nosso poeta Teixeirinha.
Sobre o sucesso tardio de Querência Amada, anos após a morte de Teixeirinha, Feix observa:
— É mais impressionante isso não ter acontecido antes, porque é uma música que tem essa exaltação forte. Parece que nasceu para ser um hino informal do Rio Grande do Sul.
Confira a letra da música abaixo:
Querência Amada
Quem quiser saber quem sou
Olha para o céu azul
E grita junto comigo
Viva o Rio Grande do Sul
O lenço me identifica
Qual a minha procedência
Da província de São Pedro
Padroeiro da querência
Oh, meu Rio Grande
De encantos mil
Disposto a tudo pelo Brasil
Querência amada dos parreirais
Da uva vem o vinho
Do povo vem o carinho
Bondade nunca é demais
Berço de Flores da Cunha
E de Borges de Medeiros
Terra de Getúlio Vargas
Presidente brasileiro
Eu sou da mesma vertente
Que Deus saúde me mande
Que eu possa ver muitos anos
O céu azul do Rio Grande
Te quero tanto, torrão gaúcho
Morrer por ti me dou o luxo
Querência amada
Planície e serra
Dos braços que me puxa
Da linda mulher gaúcha
Beleza da minha terra
Meu coração é pequeno
Porque Deus me fez assim
O Rio Grande é bem maior
Mas cabe dentro de mim
Sou da geração mais nova
Poeta bem macho e guapo
Nas minhas veias escorre
O sangue herói de farrapo
Deus é gaúcho
De espora e mango
Foi maragato ou foi chimango
Querência amada
Meu céu de anil
Este Rio Grande gigante
Mais uma estrela brilhante
Na bandeira do Brasil