Daniel Feix escolheu certo o mote para abrir sua biografia Teixeirinha – Coração do Brasil: a participação do cantor, em março de 1970, no programa A Grande Chance, comandado por Flávio Cavalcanti na TV Tupi do Rio de Janeiro. O programa tinha um quadro chamado Cara a Cara, em que artistas eram submetidos ao mau humor do apresentador. Mesmo sendo um dos maiores vendedores de discos do país, Teixeirinha, estava na cara, seria humilhado, pois além de falar errado fazia uma música que Cavalcanti e a imprensa em geral consideravam de mau gosto. Mas com humildade, educadamente, ele deixou de lado a disposição de atacar quem lhe pisasse no pala e conquistou os jurados do programa.
Claro que Coração de Luto era um dos itens do interrogatório. Para dar uma ideia do clima, um cronista carioca havia “batizado” a música de Churrasquinho de Mãe. Teixeirinha repetiu sua história com todos os detalhes e direito a lágrimas.
É nesse ponto que Feix, jornalista puro-sangue desde 2007 em ZH, entra na história para narrar a saga de Vitor Mateus Teixeira. Porque é uma saga, não há palavra melhor para defini-la. A viagem no tempo começa nos interiores dos municípios de Taquara e Santo Antônio da Patrulha com Ledurina, 13 anos, sendo expulsa de casa por ter engravidado, e o encontro dela, grávida de seis meses, com Saturnino, trabalhador rural, 20 anos mais velho, separado de sua mulher anterior.
Dirigentes da Chantecler estimam que o artista tenha comercializado 25 milhões de álbuns – sendo a parte mais significativa desse montante constituída do primeiro LP e dos demais que, nos anos seguintes, também continham 'Coração de Luto'
DANIEL FEIX
A filha de Ledurina foi criada por uma família conhecida. Outros dois filhos, dela e Saturnino, também foram doados, restando no rancho quase miserável apenas o pequeno Vitor, nascido em 3 de março de 1927. Aos cinco anos, ele já cuidava da mãe, epilética, e ajudava o pai na roça. Tinha seis anos quando Saturnino morreu, e nove quando Ledurina desmaiou, caindo na fogueira em que queimava gravetos e folhas.
A história contada por Teixeirinha em Coração de Luto é praticamente uma reprodução da realidade. Sempre que falava dela ele chorava. O disco de 78 rotações por minuto com essa música no lado B e Gaúcho de Passo Fundo no A, foi lançado em julho de 1960 pela gravadora Chantecler. Sucesso instantâneo e avassalador de norte a sul do país.
Fenômeno
“Embora não se possa provar o feito, por absoluta falta de controle na distribuição das cópias, que saíam às pressas em caminhões abarrotados da fábrica”, escreve Feix, “dirigentes da Chantecler estimam que o artista tenha comercializado 25 milhões de álbuns – sendo a parte mais significativa desse montante constituída do primeiro LP e dos demais que, nos anos seguintes, também continham Coração de Luto”. Os números oficiais somam 18 milhões de LPs. Dessa forma, Coração de Luto tornou-se uma das canções mais vendidas da história da indústria fonográfica brasileira. Ao fim do livro, são listados 67 LPs de Teixeirinha.
Para narrar a tragédia que, afinal de contas, catapultou um desconhecido cantador regionalista gaúcho ao estrelato nacional e até internacional, Daniel Feix foi aos locais em que ele passou a infância e parte da adolescência, entrevistou todos os familiares, parentes próximos e distantes, até moradores antigos e atuais desses lugares.
Nos dois primeiros capítulos do livro, Um Causo de Morte e O Guri Descobre o Mundo, Feix já deixa claro que nenhum detalhe escapará de sua atenção, incluindo os teoricamente menos relevantes e os que, para muitos, passariam despercebidos. Por isso, Teixeirinha – Coração do Brasil, que terá lançamento no dia 10 de novembro, na Feira do Livro de Porto Alegre, é uma biografia definitiva.
Ninguém conseguirá melhorá-la.
15 anos de imersão em Teixeirinha
Na bibliografia utilizada para seu livro, Daniel Feix alinha os outros quatro trabalhos já feitos sobre Vitor Mateus Teixeira: Teixeirinha e o Cinema Gaúcho, de Miriam Rossini (Fumproarte/Prefeitura de Porto Alegre, 1996), Teixeirinha, o Gaúcho Coração do Rio Grande, de Israel Lopes (Est/Fundação Vitor Mateus Teixeira, 2007), Canta Meu Povo: Uma Interpretação Histórica Sobre a Produção Musical de Teixeirinha, de Francisco Cougo (dissertação de mestrado, UFRGS, 2010) e Remixando Teixeirinha: Uma Análise Antropológica Sobre a Imagem Pública do Gaúcho Coração do Rio Grande, de Nicole Reis (tese de doutorado, UFRGS, 2010).
Único efetivamente biográfico da lista, apoiado no acervo da família e recheado de fotos, o livro de Israel (também um estudioso das obras de Pedro Raimundo e Gildo de Freitas) não se aprofunda na trajetória e muito menos na vida pessoal do personagem. Em 1985/86, quando a Editora Tchê, em parceria com a RBS, lançou a coleção Esses Gaúchos, com pequenas biografias de 40 personalidades da história e da cultura do Rio Grande do Sul, a de Teixeirinha estava encomendada; mas a pessoa contratada para fazê-la, assustada com as dificuldades encontradas (ele acabara de morrer), não entregou o texto. De modo que o livro de Feix é, de fato, a primeira real biografia de Teixeirinha. E será a única.
O livro começou a nascer em 2004, depois de Feix ter publicado na extinta revista Aplauso uma reportagem sobre o ídolo. A tiragem recorde levou à ideia de uma biografia, e o repórter passou a trabalhar nela.
— Em poucos meses de trabalho intenso, deparei com uma quantidade enorme de informações impossíveis de serem reunidas rapidamente, como era o propósito inicial – conta Feix. — Por isso, a década e meia que se passou desde então, mesmo composta de longos períodos nos quais a pesquisa esteve parada e meu foco, direcionado a outros projetos, pode ser considerada fundamental. Sem esse tempo para checagens e maturação de certas passagens não teria sido possível alcançar o resultado final.
Além de pesquisas milimétricas em jornais do Rio Grande do Sul e outros Estados, de ter ouvido todos os discos e visto os 12 filmes protagonizados por Teixeirinha entre 1966 (Coração de Luto) e 1981 (A Filha de Iemanjá), Feix entrevistou 61 pessoas, algumas várias vezes — entre o início das entrevistas e a redação final do livro, 21 morreram. Então, pode-se dizer que o repórter viveu sua própria saga ao contar, com paixão, a de Teixeirinha.
Tudo o que se quiser saber sobre ele está no livro. A bigamia e a relação (do paraíso ao inferno) com Mary Terezinha. A parceria com Gildo de Freitas. A idolatria e o preconceito. As viagens pelo Brasil e o mundo. A pobreza e a riqueza. Tudo está lá.
Teixeirinha merece.
Trecho do livro
Leia o primeiro parágrafo do capítulo 1 de Teixeirinha - Coração do Brasil
Em março de 1970, “cara a cara” era uma expressão da moda. O título do sucesso homônimo de Chico Buarque, lançado naquele início de ano, cabia para descrever todos os tipos de acareação — dos duelos dos faroestes spaghetti em voga no cinema da época aos encontros entre João Coragem e o Coronel Pedro Barros, antagonistas da novela Irmãos Coragem, o hit televisivo do momento. Cara a Cara também era como se chamava um quadro do musical A Grande Chance, da TV Tupi, no qual o apresentador Flávio Cavalcanti submetia um convidado a uma série de perguntas, incluindo as mais indiscretas, diante de um júri composto por celebridades que, ao final, sentenciava o entrevistado com base nas suas respostas. Com estilo contundente, não raro agressivo, Cavalcanti era ele próprio uma celebridade, tendo feito muita fama (e alguns inimigos), nos anos anteriores, com outro programa de auditório – Um Instante, Maestro!. Poucos artistas foram tão bombardeados com seus insultos, que incluíam a quebra de discos, em acessos de fúria em pleno palco, quanto Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha. Raros convidados foram tão esperados no A Grande Chance. Por isso, a noite abafada de quinta-feira, dia 19, a última daquele verão, foi antecedida de grande expectativa. Havia chegado a hora de os desafetos ficarem cara a cara.
Teixerinha – Coração do Brasil
De Daniel Feix, Diadorim Editora, R$ 45 em pré-venda no site da editora, R$ 48 na Feira do Livro de Porto Alegre, R$ 60 o preço de capa. Lançamento dia 10 de novembro, a partir das 18h, na Feira do Livro.