Com a pandemia, Vitor Ramil viu alguns de seus projetos ficarem em estado de suspensão. O músico tem aproveitado seu confinamento, em Pelotas, para compor, escrever e refazer planos. Uma das ideias que retomou foi aprofundar a Estética do Frio, que apresentou como um ensaio nos anos 1990 — posteriormente publicado em livro —, na qual fala dos diálogos identitários e culturais, além do climático, que aproximam o Rio Grande do Sul de Argentina e Uruguai, uma brasilidade, digamos, mais introspectiva e melancólica embalada pela milonga.
Mas o período de isolamento não impediu Vitor de apresentar novidades. Disponibilizou o clipe da faixa Labirinto, do disco Campos Neutrais (2017). O vídeo marca um dos últimos trabalhos do ator Marco Antonio Krug, que morreu no final de julho. Também divulgou sua versão musicada do poema Uivo, de Allen Ginsberg, baseada na tradução de Cláudio Willer. E ainda participou dos dois videoclipes gravados a distância pelo projeto Casa Ramil: Deixando o Pago e Noite de São João.
Em entrevista para a GaúchaZH, Vitor fala sobre seus projetos e perspectivas em meio à pandemia.
Como está sendo esse período para você?
A gente fica um pouco perplexo, com a vida em suspenso. É uma realidade nova. No meu caso, com muita preocupação, pois tenho uma mãe de 94 anos que necessita de cuidados. Acabo tendo que me expor muito porque sou responsável por ela, tenho que ir lá, sair na rua, tem que fazer coisas para a minha mãe. Eu e minha mulher (Ana Ruth) estamos bem isolados, mas tendo que atender às questões da minha mãe. Cada um deve ter o seu caso pessoal.
E em termos profissionais?
Estou escrevendo e compondo. Sigo fazendo as minhas coisas. Tinha o projeto pelo edital Natura Musical, com o show Avenida Angélica. A previsão era apresentar no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Todos os projetos da Natura ficaram em suspenso. Nós estamos estudando uma maneira de realizar esses espetáculos no período de confinamento. Provavelmente eu faça até o final do ano. Não sei ainda como vai ser.
Não estava previsto também um disco baseado nesse espetáculo?
Sim, eu já estava até ensaiando com alguns músicos antes de estourar isso tudo. Estávamos fazendo algumas experiências. Só que isso também ficou em suspenso, pois não temos a menor ideia de quando vamos poder voltar a trabalhar juntos. Ainda teria muito o que ensaiar com eles para depois ir para o estúdio. É complicado, dependemos de nos reencontrar. Tudo vai sendo repensado. É claro, nesse meio você vai compondo, fazendo novas canções nesse isolamento. Devo sair dele com muita coisa nova composta e escrita.
Que tipo de temática?
Voltei a escrever sobre a Estética do Frio, que era um projeto que eu tinha vontade há algum tempo de retomar e trabalhar com mais calma o assunto. Quando lancei o livrinho em 2004, era uma palestra que tinha apresentado em Genebra, na Suíça. Era bem conciso, eu não me aprofundava em alguns aspectos. O tempo passou e as ideias amadureceram. Estou voltado agora a isso. Tenho que pesquisar e ler bastante.
Isso se transformaria em um livro?
Não sei o tamanho que vai ter o estou escrevendo agora. Cada assunto vai abrindo uma porta. A princípio, gostaria de fazer uma compilação de coisas que eu já publiquei ou compus, seja na parte de ideias ou de música. Queria fazer uma compilação e escrever mais sobre o tema, aprofundar algumas coisas que geram mal-entendido. Trazer novas reflexões. Mas vai depender do formato que vai ter essa introdução, pode ficar maior que tudo, ser uma superintrodução.
Neste período de pandemia, você disponibilizou sua versão musicada do poema Uivo, de Allen Ginsberg, baseada na tradução de Cláudio Willer. Como foi a concepção dessa música?
Uivo era uma música que fiz há bastante tempo. Após conversas com Eduardo Bueno, que é tradutor dos autores beats, resolvi gravar. Achei que era um poema que tinha muito a ver com este momento. Gostei de tê-lo revisitado. Algumas músicas a gente faz e parece que temos que esperar um momento especial para elas acontecerem. Com o Ramilonga, esperei mais de 10 anos para botar na roda. Foi uma proposta anterior à pandemia. O diretor Antonio Ternura estava a fim de fazer um filme sobre essa música. Ele veio até Pelotas e trocamos uma ideia mais conceitual. Era um projeto mais dele, mas que eu confiava, sabia que ia fazer uma coisa bacana. Ternura fez um vídeo maravilhoso. Teve uma repercussão muito grande. Já estamos pensando em fazer um clipe de uma segunda música dos Campos Neutrais. Dar vida visual ao disco, que é de 2017, e vai ter uma continuidade através de vídeos. Estamos nos mobilizando para fazer filmes para cada música.
Dois clipes gravados pelo projeto Casa Ramil foram lançados neste período: Deixando o Pago e Noite de São João, ambos gravados a distância, com a família em mosaico. Quais os planos para este projeto?
O grupo estava se preparando para gravar um disco. Estávamos com todo um projeto encaminhado. Então, fomos pegos de surpresa (pela pandemia). Nós seguimos trocando ideias e pensando coisas relativas ao projeto. Estamos nos organizando para fazer uma nova gravação, que deve ser lançada em breve. É um projeto que queremos levar adiante, mas, como tudo no mundo da música neste momento, está em aberto.
Esse é um período em que muita coisa fica em aberto para quem é artista, não?
Todos os trabalhos meus que a gente comentou aqui estão em suspenso ou sendo estudados (risos). Vamos avançar ainda. Muita gente como eu, que compõe e escreve, está em uma situação parecida. Fiz músicas com parceiros neste período e todos eles passam por algo assim. Um estava começando um disco e teve que interromper. Está todo mundo tateando, vendo como dar continuidade as coisas. Comigo não é diferente.
Por outro lado, a pandemia não tem sido um momento em que muitas pessoas passaram a valorizar mais a música e outras formas de arte?
Talvez as pessoas tenham ganhado mais tempo para parar e ver alguma coisa. As pessoas estão mais em casa. Inclusive os músicos. Por exemplo, o músico argentino Santiago Vazquez, que trabalhou comigo em alguns projetos, é um workaholic. Está sempre fazendo muitas coisas, shows e concertos, dando aula. Ele me disse que acha que vai sair dessa pandemia num ritmo muito mais tranquilo. Se deu conta de que não precisa correr feito um desesperado para viver ou realizar as coisas. Eu já vivo mais ou menos nessa pegada. Tenho um ritmo bem tranquilo de produção. Talvez todo mundo tenha sido obrigado a parar um pouco o ritmo. Quero crer que as pessoas estão mais voltadas a ler e ouvir a música. Mas paralelo a tudo isso há muita ansiedade rolando. Já vi gente dizendo que ia aproveitar a pandemia para escrever um livro, mas passa o dia lendo jornais e buscando notícias sobre o vírus e coisas da política. É uma situação bem ambígua. De repente está tudo parado, mas ansiedade em relação ao mundo é aguçada.
Outro problema para muitos artista é a inviabilidade de realizar apresentações, o que é um ganha pão para muitos. Fora a incerteza de como será o amanhã. Como estava a sua agenda antes da pandemia?
Não tinha muita coisa. O último show que fiz foi em São Paulo. Voltei para o Sul nos dias em que estourou o isolamento. Até brinquei com o público no fim da apresentação: olha, sem abraço. Mas todo mundo riu e me abraçou depois. Ninguém estava ligado nisso. Não peguei nada. Acho que não peguei nada. Imagino que muitos artistas que faziam seis shows por semana tenham tido a agenda brutalmente interrompida. No meu caso, não.
Um texto seu publicado pela Zero Hora, em 2016, aborda que o artista paga alto preço por levar uma vida não convencional. Que muitas vezes o modus operandi do artista poderia ser depreciado por alguns setores da sociedade. De lá para cá, houve alguma evolução nessa visão por essa parte da sociedade ou vocês sente que ela foi potencializada?
Escrevei o texto durante aquele período eleitoral, que teve uma espécie de uma expansão da boçalidade no Brasil, em que as pessoas passaram a atacar os artistas e a cultura. Qualquer pessoa que tivesse uma visão mais humanista ou relacionada à arte era tachado de comunista. As pessoas passaram a hostilizar a cultura e a arte. Isso andou crescendo até há pouco tempo. Houve um momento que em parecia haver uma ação anticultura. Acho que se acalmou um pouco. Não só com o artista. A pandemia está mostrando, por exemplo, a importância do funcionalismo público. Antes, estava se demonizando o funcionário público, estavam demonizando SUS. Agora as coisas mudaram de figura. Quando o SUS se mostrou necessário, correspondeu. Se deram conta. Muitas categorias estavam sendo difamadas injustamente por um público desinformado ou mal-intencionado. Começaram a baixar a bola. Estamos vivendo um período de muita insensatez, de muita turbulência no país. Mas a gente vai passar por tudo isso. A cultura tem um tempo mais lento, mas vai sempre em frente.
Você acha que as redes sociais têm contribuído para disseminar o obscurantismo, sobretudo essa anticultura que tu te referes?
Claro, não tenho dúvidas. São o grande motor disso tudo. O grande motor da boçalidade mundial, nacional principalmente. Muitas pessoas atuam dessa maneira, manipulam umas as outras. É um mundo bem assustador, que dá muita desesperança. Mas a gente tem uma tendência evolutiva, vamos em frente.
Esse período de isolamento trouxe alguma lição valiosa para você?
Me acostumei desde muito cedo na minha vida a pensar nos outros. Acho que para muita gente que estava querendo adotar essa retórica do individualismo extremo não caiu a ficha ainda. Estamos vendo muita barbaridade nessa pandemia, gente que não está nem aí para se proteger ou proteger aos outros. Para mim, o período reforçou algumas de minhas posições, de minha visão de mundo. Estamos vendo a destruição acelerada da natureza no Brasil. Minhas convicções não mudaram. Só encontraram uma justificativa. Houve um período de aceleração de processos, testemunhamos coisas que talvez a gente fosse esperar mais tempo para ver. Isso talvez tenha o lado positivo de conscientizar as pessoas, de corrigir o que é necessário para manter uma vida social mais saudável.