Nos últimos anos de vida, João Gilberto vinha frequentando os jornais por atritos com gravadora e boatos familiares. Há mais de uma década longe dos palcos, poucas vezes era lembrado pelo que o alçou ao posto de um dos artistas mais respeitados do Brasil: sua música.
Morto neste sábado, aos 88 anos, ele foi o responsável por levar a música brasileira para o mundo. É o que afirma o crítico Zuza Homem de Mello:
– Antes de João Gilberto, a música popular brasileira era vagamente conhecida e, quando executada, em gravações de Tico Tico no Fubá e Aquarela do Brasil, soava mais como uma rumba do que como um samba. João Gilberto modificou e fixou nossa música com ritmo e melodia de tal forma que pudesse ser executada por músicos de qualquer lugar do mundo. Foi um divisor de águas.
O guitarrista e professor Nelson Faria, que aprendeu os primeiros acordes imitando o músico baiano, concorda com Zuza:
– João Gilberto foi quem conseguiu sintetizar o samba de um modo que o mundo inteiro pudesse entender. Essa síntese é a batida da bossa nova.
O crítico Celso Loureiro Chaves concorda que o músico é um divisor de águas na cultura musical brasileira, mas alerta que o reconhecimento internacional, pelo qual João muitas vezes é lembrado, deve ser secundário:
– Nós, brasileiros, temos essa necessidade de validação do Exterior. Mas o que está faltando é o reconhecimento nacional.
Foi em 1958 que João Gilberto deu início a uma transformação na música brasileira, com a gravação de Chega de Saudade, samba de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. É o primeiro registro de um gênero que mais tarde ganharia o rótulo de bossa nova. Para Loureiro Chaves, três elementos distinguem a originalidade do músico: a maneira de cantar, o tratamento de harmonia e o ritmo. O crítico refuta a tese, comumente difundida, de que foi o avanço tecnológico dos microfones que permitiu o canto suave, sem impostação, pelo qual o baiano é identificado:
– Não há uma inovação de meios de gravação que tenha possibilitado esse canto. João Gilberto gravou com os mesmos meios que Vicente Celestino gravava, por exemplo. Ele não é filho do microfone. De quem esse canto é filho? Para ser sincero, nunca descobri. Quem chegou mais próxima disso antes dele foi Lucio Alves (1927-1993). É única genealogia mais próxima que identifico.
Para Loureiro Chaves, João Gilberto conseguiu concentrar conhecimentos de harmonia e ritmo da música brasileira e condensá-los em sua voz e seu violão:
– A música brasileira, principalmente de concerto, sempre teve aspectos de harmonia muito fortes. Isso foi desprezado muitas vezes em função de coisas consideradas mais brasileiras, reconhecendo a harmonia como uma coisa mais europeia. Mas a harmonia estava muito desenvolvida aqui.
Zuza Homem de Mello também aponta que João Gilberto serviu como elo entre ícones da MPB. A admiração comum pelo baiano serviu e ainda serve como um fator de identificação entre músicos de diferentes formações e gerações.
– Muitos devem a ele o início de suas carreiras. Entre outros, estão nomes como Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Ivan Lins. Ou seja, ele impulsionou a nata da música brasileira – afirma Zuza.