(Esta reportagem foi publicada originalmente no Segundo Caderno, do jornal Zero Hora, em 26 de novembro de 2001. Assinado por Renato Mendonça, o texto recebeu algumas atualizações neste sábado (6), após a morte de João Gilberto, e publicado em GaúchaZH).
Eram 21h de sexta-feira, 23 de novembro de 2001, hora em que o show de João Gilberto deveria estar começando, e o cantor recém estava saindo do seu hotel. Quando ele finalmente subiu ao palco do Teatro do Sesi, operou-se o milagre do tempo. Para o público, o atraso era de 42 minutos. Para João, parecia ser de 46 anos.
Absolutamente afável, emocionado e bem-humorado, o baiano estava mergulhado numa viagem nostálgica, num acerto de contas com a cidade e os amigos que o receberam durante parte do ano de 1955.
O espetáculo se iniciou com o humilde João aplaudindo o público pela paciência e pedindo desculpas.
– Vocês vão me ajudar. Qual é a primeira?
E o público atônito, esperando um artista irascível, temperamental, e topando com um camarada que não parava de lembrar os nomes dos amigos gaúchos. E nas quase duas horas e meia seguintes de show (que estava previsto para durar apenas 90 minutos), a relação do público com João Gilberto foi de intimidade, diferente da última vez que o cantor havia estado na cidade, em 1996, quando era de fria reverência.
João, à época, com 70 anos, evocava Boneca Regina, Cândido Norberto, Luis Telles, Armando Albuquerque, Hedy Pederneiras, Sonia, Cristiano, Maria de Lourdes, Norberto Baldauf, Conjunto Farroupilha, Paulo Diniz ("Que me contratou para cantar numa boate") e o garçom de um bar em Porto Alegre, um tal de Antonio:
– Ele dizia "João, não beba, experimente um Toddy".
Chegou a narrar um causo de Mario Quintana.
– Perguntaram ao Mario "Como tem passado?", e ele respondeu "Só tenho presente".
Mas, no palco, o clima era pretérito. No intervalo entre uma memória e outra, João Gilberto mostrava por que era gênio que sobreviveria ao futuro. Não era um instrumentista virtuose, batia as cordas do violão contra o microfone, trastejava, mas esbanjava originalidade, alterando andamentos, prolongando versos até a voz ficar embargada, ritualizando a música popular com músicas centradas entre as décadas de 1940 e 1960.
João chegou a compor uma música em homenagem ao público gaúcho
Cantou quase todas as bossas clássicas, lembrando Insensatez, Desafinado, O Pato, A Felicidade, Solitude (em que ele mudava de oitava na voz com a maior desfaçatez), subverteu pela enésima vez o ritmo em Retrato em Branco e Preto. Homenageou o Sul cantando Prenda minha, Se Acaso você Chegasse, Gauchinha Bem-Querer e Quem Há de Dizer, emocionou com a italiana Estate, além de recordar Eu Sonhei que tu Estavas tão Linda, apontando que era uma de suas favoritas quando estava em Porto Alegre. E deu pistas de que estava na cidade para um acerto de contas.
Em Insensatez, frisou o verso "Quem não perde perdão / Nunca é perdoado / Perdão, perdão". Quando abriu o espetáculo, chegou a murmurar algo sobre "A carta que eu não escrevi". E as surpresas seguiram, quando João tocou sua composição instrumental Um Abraço no Bonfá. Depois entoou o Hino Nacional Brasileiro, parou no verso "Terra adorada" e soltou um suspiro de enfado, numa manifestação política tão delicada quanto contundente. Deu tempo ainda de farejar alguém fumando:
– Cigarro? E o Guaíba? E o crepúsculo?
Aí tapou o nariz e improvisou "Chega de cigarro / A realidade é que...". No final, incapaz de lembrar da letra do Samba da Bênção, João improvisou, lembrando novamente os nomes de outros tantos amigos seus na Porto Alegre de 1955. E, ali na hora, compôs uma música na frente do público do Teatro do Sesi. Cantava:
– "Bênção todo mundo do Rio Grande do Sul / A ioga diz que você não é seus erros / Saibam que eu rezo por vocês / Foi linda a vida por causa de vocês / Viva o Rio Grande do Sul que eu adoro".