(Esta reportagem foi publicada originalmente no caderno Cultura, do jornal Zero Hora, em 17 de novembro de 2001. Assinado por Eduardo Veras, o texto recebeu algumas atualizações em 6 de julho de 2019, após a morte de João Gilberto, e também nesta quinta (10), quando o músico faria 90 anos, e publicado em GZH).
Nascido em 10 de junho de 1931, em Juazeiro, Bahia, João Gilberto já foi chamado de tudo e nada, sim e não, começo e fim da moderna música brasileira. Desde a explosão do LP Chega de Saudade, em 1959, que falar sobre o artista virou uma espécie de exercício litúrgico.
O cineasta Glauber Rocha, ainda nos anos 1960, foi o primeiro a chamá-lo de deus. O poeta e ensaísta Augusto de Campos, no seminal O Balanço da Bossa, em 1968, foi o primeiro a teorizar em profundidade sobre a força transformadora de João e da bossa nova, definida por ele como "manifestação antropofágica, deglutidora e criadora da nossa inteligência".
Desde então, só aumentou tanto a idolatria quanto a tentativa de se decifrar a invenção joãogilbertiana. Caetano Veloso, ao preceder o mestre num show no Teatro Rex, em Buenos Aires, em 2000, disse que não era seu discípulo, mas seu apóstolo.
No livro João Gilberto, Zuza Homem de Mello procurou descrever o raro privilégio de se assistir a um show do cantor e violonista baiano: "João cria uma sensação de levitação, que só pode ser explicada pelo elo da sensibilidade musical estabelecido entre ele e cada um na plateia". Walter Garcia, no livro Bim Bom, tentou dissecar o que é a tal batida da bossa nova criada por João.
A academia se rende à música popular. João foi tema de dissertações e teses. Até mesmo nomes ilustres da filosofia, como Lorenzo Mammí, se ocuparam de sua obra.
João Gilberto manteve vida longe da badalação
Cresceu igualmente o anedotário em torno de João. O filho de seu Juveniano e dona Patu optou por uma vida discreta, introspectiva, sem badalação. Vivia quase confinado num flat do Leblon, não ia a festas nem shows de TV, nunca posou para fotos na Ilha de Caras. Não foi sequer receber o Emmy que ganhou em 2001 pelo disco João Voz e Violão.
Mas repórteres esquadrinharam hábitos e manias desse baiano de Juazeiro. Em 2001, por exemplo, sabia-se que o pai de Bebel Gilberto namorava uma bonita moçambicana, encomendava churrasco pelo telefone, gostava de ver lutas de boxe na televisão, não tinha aparelho de CD em casa. Já se publicou matérias até mesmo sobre a impossibilidade de entrevistá-lo. Amigos mais próximos diziam que João era sua própria esfinge.
— Ele detesta que falem dele — contou, em 2000, em entrevista a ZH, o jornalista Nelson Motta, amigo de João. — Ele vive do mistério. E não gosta que toquem no mistério dele.
Os amigos de João, aliás, eram absolutamente fiéis ao artista. Os amigos que ele fez em Porto Alegre na época em que morou por aqui, entre o verão e o inverno de 1955, continuaram seus amigos e não contaram nada que João não contaria. Revelaram, por exemplo, que o ex-marido de Astrud e Miúcha era católico praticante (já esteve até com o papa, em Roma), e era um amigo doce e gentil, amante de longas conversas ao telefone. Lembravam com nostalgia a passagem de João pela capital gaúcha. Esse, diga-se, constitui um capítulo singular na história do autor de Bim Bom e Hô-Bá-Lá-Lá.
Em Porto Alegre, artista viveu no antigo Hotel Majestic
João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira era um jovem desconhecido, sem casa, sem trabalho e praticamente sem amigos, quando morou em Porto Alegre. Magro, de bigodinho fino, com um sobretudo emprestado, Joãozinho tinha 24 anos e andava infeliz. O músico Luís Telles, porto-alegrense que havia tocado com ele no conjunto Quitandinha Serenaders, achou que uma temporada por estas plagas poderia inflar o combalido moral do amigo. Instalou-o no antigo Hotel Majestic (hoje, Casa de Cultura Mario Quintana) e mandou que ele se concentrasse no violão.
— O difícil — lembrou, em 2001, o advogado Alberto Fernandes — era tirá-lo do hotel. (Fernandes tinha 28 anos na época e, com o passar das décadas, seria preservado como um dos poucos mas constantes interlocutores de João.)
Quando escapava do hotel, Joãozinho flertava com as moças na Confeitaria Central, no antigo Largo dos Medeiros, passava horas nas cabines da loja de discos na esquina das ruas da Praia e Uruguai, e frequentava o Restaurante Treviso, no Mercado Público. Chegou a tocar no Clube da Chave, na Rua Castro Alves, e fez uma apresentação na Rádio Gaúcha, então no Edifício União.
João era tratado como filho na casa da professora e jornalista Boneca Regina, mãe de Alberto Fernandes. Foi ela quem encaminhou João para umas aulas com Armando Albuquerque. Albuquerque – que foi homenageado com o CD Uma Ideia de Café, de Celso Loureiro Chaves, e de quem se comemora este ano (2001) o centenário de nascimento – era compositor e professor. Não chegou a dar aulas para João, mas passou tardes inteiras conversando com o rapaz, tocando piano, ouvindo violão, discutindo música. Não se sabe o quanto podem ter sido decisivos para João, para a gestão do gênero que ficaria conhecido como bossa nova, os encontros com aquele mestre modernista.
Na noite chuvosa de 18 de outubro de 1996. João ofereceu um recital histórico no Auditório Araújo Vianna para 3,2 mil pessoas. Ele apareceu no palco às 22h15min, com uma hora e 15 minutos de atraso, o auditório lotado, a plateia tensa, temendo que o mestre houvesse desistido. De terno preto e camisa branca, acompanhado tão somente por banquinho e violão, João ofereceu 31 pérolas do cancioneiro nacional. Ao longo de duas horas, sorridente, generoso, atendeu pedidos, balbuciou frases como "Porto Alegre... saudade... amigos" e vestiu Prenda Minha com roupagem bossa nova.
Mostrou porque é o fundador da moderna música brasileira, o fim e o começo, o sim e o não, o tudo e o nada. João fez gente chorar quando tocou Ave Maria do Morro, ou Chega de Saudade, ou Retrato em Branco e Preto.