Por Vinicius Brum, compositor e mestre em literatura
Gildo de Freitas é um trovador. Numa explicação popular e direta (situada dentro da cultura regional gaúcha), trovador é aquele que canta de maneira improvisada. Depreende-se daí que o fazer desse artista da palavra pertence ao mundo da oralidade.
Na canção Eu Reconheço que Sou um Grosso, o improvisador regionalista demonstra fazer a leitura do universo ao seu redor com uma capacidade de compreensão e de elaboração crítica de singular qualidade. “Me chamam de grosso/ eu não tiro a razão/ eu reconheço a minha grossura/ mas sei tratar a qualquer cidadão/ até representa que eu tenho cultura.” Assim Gildo se apresenta e logo adiante enfatiza: “Pra cantar eu trouxe vocação.” Provavelmente, Gildo tenha trazido vocação para algo além de cantar. Sua vivência de guri campeiro, de família pobre, há de ter contribuído para aguçar-lhe os sentidos e proporcionar-lhe uma visão clara de sua condição social.
Como pode alguém com tão pouco “estudo” arrogar-se a um patamar de eficiente circulação social ao tratar bem a qualquer cidadão e afrontar o seu entorno — que se pretende o centro da cultura — quando diz que até representa que eu tenho cultura?
O improvisador, em seu cantoconfissão, deixa clara a questão de seu nível de escolaridade ao ostentar que não foi falquejado em bancos colegiais e que seu aprendizado se deu na escola do mundo. Ainda que essas designações remetam a um lugar comum desgastado, parece que na voz rasgada do troveiro ganham em inventiva e profundidade. Gildo é veraz. Seu canto é faca amolada desfiando tentos de uma fina lonca que vai sendo trançada com maestria pela rudeza incondicional de sua compreensão translúcida da vida.
A fala de uma personagem deve, para garantir verossimilhança à narrativa, soar como algo inerente à personalidade e à constituição intrínseca do indivíduo que enuncia. Para fugir das armadilhas da inautenticidade, Simões Lopes Neto dá voz a Blau Nunes, o vaqueano, que narra seus causos com a linguagem própria do homem do campo. E Blau é um campeiro experiente, mas Gildo parece dar voz a Gildo. Gildo é um cantautor. Como o Martin Fierro, de José Hernandez, canta opinando. Gildo canta pela consciência de Gildo. E é o tom confessional da narrativa cantada que evidencia esse caráter simbiótico. A consciência afirmativa de si mesmo se estabelece por uma alteridade nítida desde o primeiro verso da canção: “Me chamam de grosso.”
O cantador reconhece quem o adjetiva. E se situa sem ser intimidado dentro deste confronto. O próprio título da canção remete para essa tomada de posição: “Eu reconheço que sou um grosso”. Diante de uma sociedade letrada, coloca-se alguém que não possui tal “qualidade” e que, ao invés de se envergonhar com a situação, enfrenta-a com inteligência afiada.
A fixação fonográfica dos improvisos do cantador é que transporta Gildo da oralidade para a cultura escrita. Cada palavra ou nota musical fixada é fruto de sua inventiva. Seu relato é em primeira pessoa, porque seu conhecimento provém do que provou. E é pela canção que Gildo de Freitas situa-se no mundo letrado que pretensamente poderia ser o mote para seu silêncio.
Pode o cantador não ter aprendido suficientemente a norma culta da língua. Há relatos sobre o seu frágil processo de alfabetização. Não há como, contudo, deixar de reconhecer que isso não interferiu decisivamente na construção do legado popular de sua obra. Iletrado e analfabeto, talvez, mas vigoroso e eloquente artista da palavra musicada.