Sem conter as lágrimas diante de uma plateia lotada e participativa, a cantora Elza Soares recebeu na noite de domingo (26), em Porto Alegre, o primeiro título de doutora honoris causa concedido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a um músico.
Além de agradecer repetidas vezes pela homenagem, a cantora defendeu a importância do investimento em educação e relembrou momentos marcantes de sua vida — a começar pela vez em que foi ridicularizada ao estrear em um palco. Quase 70 anos depois, as risadas despertadas por sua magreza e pelas roupas mal-ajambradas se transformaram em aplausos e gritos entusiasmados de "doutora".
Em um bate-papo com o compositor José Miguel Wisnik após a entrega do diploma pelo reitor Rui Vicente Oppermann, no Salão de Atos da UFRGS, Elza lembrou de quando se apresentou no show de Ary Barroso, como exemplo das dificuldades que teve de enfrentar como mulher, negra e pobre, para se estabelecer como uma das vozes mais importantes do país. Questionada ironicamente por Barroso de que planeta tinha vindo, respondeu: "Do planeta fome".
— Deram gargalhada de mim, que pesava pouco mais de 30 quilos e usava alfinetes nas roupas. Mas não me importei com aquilo. Cantei, e o Ary Barroso me deu a nota máxima. Ninguém mais deu risada — contou Elza.
A artista também relembrou da amizade com o gaúcho Lupicínio Rodrigues, que lhe trouxe a Porto Alegre para seu primeiro show profissional — e onde voltou a se apresentar na noite de sábado (25) em um Opinião lotado.
A concessão do título de doutora, aprovado por unanimidade pelo Conselho Universitário (que reúne reitoria, professores, estudantes e servidores) se baseou na relevância de sua produção artística e de sua vida pública no combate ao racismo e à promoção da cultura afro-brasileira.
— Não tenho muito o que falar porque estou chorando o tempo todo, e só não fico em pé porque a coluna não permite. Só sei dizer obrigada, obrigada, obrigada. Mais nada — declarou a cantora, que permaneceu o tempo todo sentada em razão de dores nas costas.
Mas Elza tinha muito a dizer — e a plateia também. Empolgadas com a celebração da vida e da obra da cantora, as pessoas que lotaram as mais de mil poltronas não se contentaram em apenas aplaudi-la em pelo menos 30 momentos ao longo de pouco mais de uma hora. Gritaram "doutora", "maravilhosa", pediram que cantasse e, mesmo sem que estivesse previsto, chegaram a gritar perguntas para que ela respondesse. Uma delas foi sobre a importância da cultura para a cidadania do negro.
— Cultura é fundamental para a cidadania do negro, do branco, de qualquer um — devolveu, para mais uma rodada de aplausos.
Outro perguntou por que ela achava que Deus é mulher (nome do disco lançado em 2018).
— Porque se fosse homem já teria acabado com tudo isso há muito tempo. Só mulher tem essa paciência — respondeu Elza, para deleite dos fãs.
Além de destacar Elza Soares, o evento celebrou ainda a importância da arte, da cultura e da universidade pública — alvo de controvérsia nas últimas semanas em razão do anúncio de contingenciamento de verbas por parte do governo federal.
— Precisamos de escolas públicas e de respeito aos professores. Precisamos de arte, cultura e educação — discursou a homenageada da noite.
O evento se encerrou por volta das 21h30min com o público bradando "doutora!, doutora!" para a mulher que, quase 70 anos atrás, havia subido pela primeira vez em um palco sob riso e deboche.