Durante entrevista para GaúchaZH, o vocalista Beto Bruno observou uma foto emoldurada na sala de seu apartamento. Tratava-se de um registro não divulgado da Cachorro Grande com os Rolling Stones, realizado quando a banda gaúcha fez o show de abertura para a apresentação dos britânicos no Beira-Rio, em 2016. Ao deparar com a imagem de um dos dias mais felizes de sua vida, o cantor foi atropelado por suas lembranças.
– Desculpa, me emocionei um pouco. Achei que ia conseguir falar na boa, mas me perdi. Não está fácil para mim – lamentou.
Beto Bruno relata que costumava brincar que a Cachorro Grande poderia acabar depois que abrisse para os Stones.
– Era o mais alto que a gente poderia chegar – define o vocalista da banda, que também fez shows de abertura para nomes como Oasis, Aerosmith, Primal Scream, Iggy Pop, entre outros.
Dois anos depois de dividir a noite com Mick Jagger e Keith Richards, a Cachorro Grande anunciou seu fim no último dia 12 de novembro, às vésperas de completar duas décadas de trajetória. Segundo comunicado divulgado pela banda, o quinteto "planejou a turnê até o meio de 2019 e a partir dali os integrantes perceberam que cada um tinha um plano próprio desenvolvido". A nota também deu indicações dos projetos em que cada integrante se envolveria:
"O vocalista Beto Bruno já está começando a gravar seu primeiro disco solo, que será lançado justamente ao final da turnê da Cachorro Grande - portanto, vai emendar com fita durex, como se fazia antigamente, a fita de rolo do voo com a banda com o seu pouso solo pelos palcos. O baixista Rodolfo Krieger está com mudança marcada para a Europa; o baterista Gabriel Azambuja quer investir em produção musical, o pianista Pedro Pelotas também tocará seus outros projetos musicais, e o guitarrista Gustavo X engrossa a trupe na banda do vocalista."
Formada em 1999, em Porto Alegre, a Cachorro Grande foi gradativamente ganhando terreno além da cena do rock gaúcho. Os dois primeiros discos, Cachorro Grande (2001) e As Próximas Horas Serão Muito Boas (2004), ajudaram a projetar a banda nacionalmente, mas o boom veio mesmo em 2005, com o álbum Pista Livre e a participação no Acústico MTV: Bandas Gaúchas. De lá para cá, o grupo expandiu sua sonoridade e chegou a uma fase mais experimental nos recentes discos Costa do Marfim (2014) e Electromod (2016), nos quais promove uma fusão do rock com a música eletrônica. Em abril deste ano, a Cachorro lançou um disco ao vivo, intitulado Clássicos. Porém, no mês seguinte, a banda demitiu o guitarrista Marcelo Gross. Segundo Beto Bruno, em entrevista à Folha de S.Paulo, o processo de saída do integrante foi gradual:
— Já faz alguns anos que sentimos um certo afastamento dele a respeito do processo criativo da banda. No fundo, estou muito triste com essa situação toda. Mas ao mesmo tempo aliviado por não ter que brigar e discutir mais sobre assuntos que foram sendo protelados com o passar dos anos.
Em entrevista concedida para GaúchaZH, Beto Bruno falou sobre o processo de término da banda, os planos para a turnê de despedida e se o fim seria definitivo.
Como vocês chegaram à conclusão de que seria necessário parar com as atividades da Cachorro Grande?
Foi gradual. Nos últimos seis meses, aconteceram muitas coisas. A primeira foi uma das coisas mais tristes pelas quais a banda já passou: a demissão do Gross, nosso guitarrista original. Foi muito chato. Depois de uns 20 anos juntos, não tem coisa mais chata do que tomar a decisão de que a banda não consegue mais seguir se não fizermos alguma mudança. Quando o Gross saiu, a gente se ajeitou. Pegamos um guitarrista que já estava conosco na estrada, que era nosso roadie, o Gustavo X. Nos ajeitamos e começamos a cair na estrada de novo. Nesse meio tempo, o Gabriel se mudou para Gramado e se acomodou por lá. Em uma banda, o baterista tem que estar morando na mesma cidade. Imagina nós todos morando em São Paulo e o baterista em Gramado. Ele começou a ter alguns trabalhos como produtor musical e teve um filho. Há um mês, o Gabriel ligou para a banda para comunicar que estava saindo, que poderíamos arranjar outro baterista. Na verdade, acho que ele cansou de pegar avião às quatro da manhã. Se tem uma coisa que acaba com banda é pegar voo de madrugada depois de 20 anos... Então, ele se acomodou e decidiu ficar por lá. Rodolfo está indo morar em Portugal com sua mulher, no meio do ano que vem. Ficamos só eu e o Pedro. Nós dois conversamos e percebemos que tudo indicava que a banda teria chegado ao fim. Eu não ia seguir sem tantos membros originais. Acho que o som da Cachorro Grande perde muito. Decidimos dar um tempo. Não seria a melhor hora, pois acabamos de lançar um disco ao vivo, embora esse tipo de registro é bom porque fecha um ciclo. Rodolfo também deve lançar um disco no ano que vem. Cada um arrumou o que fazer. Inconscientemente, eu tinha começado a gravar meu disco solo, mas não ia terminar a banda por isso. Na minha cabeça, uma coisa não ia atrapalhar a outra. Hoje já vejo que vai, sabe. Foi uma coisa meio inconsciente, não foi na loucura, não foi com a cabeça quente. Nós conversamos muito.
Como estava o clima entre vocês?
O clima já vinha se desgastando de uns tempos para cá. A gravação do último disco de estúdio, Electromod, foi bastante conturbada. A banda não estava unida, desde lá vinha se desgastando. Quando terminou a gravação, há dois anos, imaginei: "Bah, acho que não entro mais no estúdio com esses caras". Não falei para eles na hora, óbvio. Hoje posso falar. De qualquer maneira, alguma coisa se quebrou ali. Desde o momento de separar o repertório para gravar, antes de entrar no estúdio, já estávamos brigando. Vi que alguma coisa se perdeu ali. Já não tenho vontade nenhuma de entrar no estúdio e gravar coisas inéditas com a Cachorro Grande. O motivo de estar com a banda se perdeu. O grande lance é gravar os discos e sair excursionando. Eu não teria saco nenhum, nem inspiração, para gravar nada com a Cachorro. Então, o disco ao vivo veio bem a calhar.
É um fim definitivo?
Isso daí nunca se sabe, pode ver as histórias das bandas que sou fã. Sempre acho muito estranho quando volta uma banda do nada só para fazer uma turnê, acho isso daí muito pega-ratão. Teria que vir com uma coisa inédita para fazer uma turnê, e coisa inédita, no momento, eu não tenho a mínima vontade de fazer. Tem muita gente que anuncia o final da banda e volta daqui a um ano. Mas não é o nosso caso. A banda está acabando mesmo. Não existe a mínima condição para gravar alguma coisa junto. E quando acabo alguma coisa, acabo mesmo. Ainda não estou completamente recuperado, para ser sincero. Anunciamos na segunda-feira (12 de novembro) o fim da banda, mas havíamos tomado essa decisão há 30 dias e estávamos segurando (a informação).
Como foram esses dias?
Tinha dias que eu não queria nem acordar, estava em uma depressão profunda. Afinal, são 20 anos juntos com esses caras, 20 anos dando o sangue pela banda. Te juro, não tem ninguém que tenha dado tanto sangue quanto eu, literalmente, já perdi sangue no palco (risos). Foi a coisa mais grandiosa que já fiz na minha vida. Só não é mais importante quanto ter um filho ou encontrar a mulher da sua vida.
Então, seria uma sensação similar a perder um ente querido?
Com certeza, pois é a tua família. Estou há 20 anos com eles para cima e para baixo neste país. E uma hora esse brinquedo termina. Fiquei muito sentido, não queria sair de casa. Eu não recebi nenhum amigo aqui em casa. Fiquei trancado sozinho. Minha mulher, Denise, ajudou a me levantar. Um pouco antes de fazermos o anúncio, comecei a me encorajar. O que está me encorajando é fazer o disco novo.
Esse disco serve como uma espécie de terapia?
Está servindo. Meti a cara no meu disco, que está sendo gravado para ver se lanço no ano que vem. Estou gastando todo o meu tempo nisso como fazia com a Cachorro. Mas fico muito triste. Tive um sentimento de vazio. Estava melhorando um pouco, estava mais forte por causa do disco. Porém, quando lançamos a mensagem do encerramento e vi o retorno do público, dei uma "caidinha" de novo. Dei uma entristecida, foi inevitável. Vi que a Cachorro Grande foi muito importante para vida de muita gente.
Teve gente que cresceu ouvindo a banda.
Teve uma geração que cresceu junto. Teve várias bandas que se influenciaram. Fora as nossas famílias, uma centena de gente que trabalhou junto. Daí dei mais uma entristecida. Tenho encontrado os amigos pela rua e fingido que está tudo bem, mas não, não está tudo bem. Porém, não temos mágoa nenhuma mais entre nós. Não tem nenhuma rusga. Acho que porque somos fortes, mesmo. Não tenho mais porque brigar com os caras.
E os shows de despedida?
Quando estávamos naquelas trevas de acabar a banda, veio a ideia de fazer essa turnê de despedida. É uma maneira de terminar numa boa, afinal, foram 20 anos de festa. Estamos vendo a agenda, quais cidades iremos tocar. O Gross, que é o guitarrista original, vai fazer alguns desses shows, os que ele puder. É mais um motivo para a gente se despedir direito, pois brigamos muito e agora temos a chance de se despedir em paz, fazendo uma festa com os fãs. Em vez de acabar nas trevas, como muita banda, sem fazer nada ou anunciar fim, parece que fica inacabado, faltando alguma coisa.
Então, haverá motivação para essas últimas apresentações.
Com certeza. É o último suspiro da banda. Está todo mundo nessa. Isso deu uma injeção de ânimo. Vamos acabar do jeito que tem que acabar. Temos a chance de acabar em cima do palco, com todo mundo abraçado. Ah, vai ser uma choradeira. Até porque estamos reservando o último show para ser no Opinião.
Por que o Opinião?
Nós lançamos todos os nossos álbuns no Opinião. A casa sempre nos acolheu, desde quando éramos uma bandinha pequena, que tocava no Jekyll e no Garagem Hermética. Nosso público gaúcho cresceu assistindo à gente no Opinião, foram mais de 20 apresentações por lá. Aliás, antes de ter a banda, meu sonho era tocar no Opinião.
Faltou algo para conquistar com a Cachorro Grande?
Como banda, nós fizemos tudo o que você pode imaginar. Pode ter certeza que nós nos divertimos mais do que qualquer um. Foram 20 anos, mas parece que duraram apenas dois. Parece que foi ontem que cheguei em Porto Alegre.