Eu tenho um bonequinho do Paul. É daquela série de action figures licenciados que as bandas lançam para levar mais uma grana dos fãs – o meu é do desenho Yellow Submarine, ele de terno marrom, calça bege, gravata amarela e vermelha. Se inventarem de mandar mais uma sonda ao espaço sideral e quiserem levar junto um exemplo só da psicodelia dos anos 1960, aquele desenho dos Beatles não seria de todo mau.
Sendo os Beatles a minha primeira banda "de adulto", achei engraçado quando ganhei aquele bonequinho. Para mim, McCartney nunca foi brinquedo. Afinal, ele criou metade do que existe no rock – e deu ideias para a outra metade. Quando aceitei tocar baixo numa banda, foi porque tinha guitarristas demais e eu era o pior deles; mas para as meninas eu contava que o Paul também abriu mão da guitarra para George e John e aí nasceram os Beatles. Parecia um motivo mais relevante: ao ceder seu lugar, ele não atrapalhou a formação da maior banda de todos os tempos.
Paul também foi o primeiro ídolo da minha mãe. Dona Angelita gostava mais dele entre os quatro de Liverpool quando tinha 12, 13 anos, e continuou assim vida afora. Em algum momento dos anos 1980, comprou na Mesbla um vinil chamado Beatles Ballads para cantarolar o Yesterday. Lá em casa, o bolachão revezava sempre com outra coletânea, do ABBA. Mas, logo que eu abandonei os discos infantis coloridos de criança e me deixaram ouvir coisas de adulto, reinou sozinho na vitrola.
Em 7 de novembro de 2010, peguei a minha mãe e fui ao Beira-Rio. Não era a minha primeira vez com Paul – um ano antes, eu estava em Nova York, num dos shows que viraram o DVD Good Evening New York City. Havia sido o final da minha saga de beatlemaníaco: depois de conhecer Liverpool e cruzar a faixa de segurança de Abbey Road, ver um deles ao vivo. Cheguei bancando o experiente, prevendo o set list, antecipando piadas que ele faria. Meu papel era claro, um mero cicerone da minha mãe.
Não foi nada disso.
No início de Venus and Mars, começou o arrepio. Em Jet, a euforia. Quando Paul cantou "close your eyes and I’ll kiss you", até pensei: agora a Angelita chora. E comecei a chorar – ela, não – em All My Loving todinha. Em três músicas, estava lá um marmanjo consolado pela mãe. Meu segundo show não teria nada a ver com o primeiro. Ao tocar Drive My Car ali na Padre Cacique, no quintal da minha casa, Paul me fez parar de chorar e começar a rir, acalmando uma mãe já preocupada. Ao mostrar a "nova" Dance Tonight, me fez tirá-la para dançar e, em Lady Madonna, brincar de air piano.
Durante quase três horas, Paul dedicou-se inteiramente a fazer com que nossa noite fosse a melhor possível. Puxando um "ah, eu sou gaúcho" que em outro artista soaria marqueteiro, mas nele era afetuoso. Explicando, a fãs menos ligados, por que tocava semiobscuridades como Highway, do projeto paralelo Fireman. Cobrindo todas as facetas dos Beatles, da romântica And I Love Her, para as senhoras suspirarem, a Helter Skelter, precursora da nobre arte do metal.
E aí, meu bonequinho do Paul fez sentido. Depois de 20 anos como um fã de Beatles daqueles que leem todos os livros e veem todos os filmes que der, pesquisam nota por nota as músicas e brigam com fãs de Beach Boys – porque Stones não dá sequer para achar que é rival –, eu começava a ter a relação correta com meu ídolo. Naquele palco, fazendo de tudo para que tivéssemos a maior noite de nossas vidas, Paul mostrou que é, sim, um brinquedo. Desde que encontrou John Lennon e subiu com ele num palco em Liverpool, dedicou seis décadas a nos entreter. Deu material de sobra para rir e chorar, gritar e sussurrar. Mostrou que música é um jeito adulto de brincar com a vida. Às 23h56min, quando deu o último "boa noite", me fez entender que todo fã tem um bonequinho de seu ídolo na prateleira. E, voltando devagarinho para casa naquela noite quente de domingo, virei um fã muito melhor.
OS SET LISTS
Em 2010:
Venus and Mars/Rock Show
Jet
All My Loving
Letting Go
Drive My Car
Highway
Let me Roll It
Long and Winding Road
Nineteen Hundred and Eighty-Five
Let me In
My Love
I’Ve Just Seen a Face
And I Love Her
Blackbird
Here Today
Dance Tonight
Mrs. Vanderbilt
Eleanor Rigby
Something
Sing the Changes
Band on the Run
Ob-la Di Ob-la Da
Back in the Ussr
I’ve Got a Feeling
Paperback Writter
A Day in the Life
Let It Be
Live and Let Die
Hey Jude
Day Tripper
Lady Madonna
Get Back
Yesterday
Helter Skelter
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band/The End
Em 2017:
(Possível set list, com base no repertório do espetáculo da última segunda-feira em Detroit)
A Hard Day’s Night
Save Us
Can’t Buy me Love
Letting Go
Drive My Car
Let me Roll It
I’ve Got a Feeling
My Valentine
Nineteen Hundred and Eighty-Five
Maybe I’m Amazed
I’ve Just Seen a Face
In Spite of All the Danger
You Won’t See Me
Love me Do
And I Love Her
Blackbird
Here Today
Queenie Eye
New
Lady Madonna
FourFiveSeconds
Eleanor Rigby
I Wanna Be Your Man
Being for the Benefit of Mr. Kite!
Something
A Day in the Life
Ob-la-Di, Ob-la-Da
Band on the Run
Back in the U.S.S.R.
Let It Be
Live and Let Die
Hey Jude
Yesterday
Day Tripper
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
Helter Skelter
Golden Slumbers
Carry that Weight
The End