Das tantas imagens, sons e memórias despertadas ao longo de três horas diante de Paul McCartney, uma prospecção é sedutora. Com a formação de músicos que mantém há 15 anos, Paul nos dá uma ideia de como os Beatles poderiam soar hoje se o peso, as nuanças, os efeitos e a sofisticação dos arranjos lapidados no estúdio com a ajuda do produtor George Martin pudessem ser reproduzidas ao vivo.
A limitada tecnologia disponível para banda e público nos concertos dos anos 1960 tornou-se razão de enorme frustração para os "Fab Four", em especial para a ambição sonora experimental que este hoje senhor de 75 anos perseguia à época.
Com Rusty Anderson na função de guitarra solo de George Harrison; Brian Ray segurando o ritmo na outra guitarra, tal qual John Lennon; Abe Laboriel reproduzindo as complexas levadas de bateria de Ringo Starr; e Paul Wickens, quem sabe, fazendo as vezes do amigo convidado Billy Preston – e Paul, lógico, no seu lugar se sempre –, clássicos da beatlemania que ressoam por mais de 50 anos, arrebatando fãs de uma elástica faixa geracional, fazem justiça aos vigorosos registros originais.
Em seu segundo show no Estádio Beira-Rio, sete anos após a visita desbravadora a Porto Alegre, Paul percorreu a trajetória dos Beatles de Love Do, o primeiro sucesso, ao derradeiro The End. Pelo caminho, passou pela singeleza de Can’t Buy me Love, a circense psicodelia de Being for the Benefit of Mr. Kite!, o embrionário heavy metal Helter Skelter e chegou à comovente catarse de Let it be e Hey Jude. São músicas que seguem retumbando entre a essência da simplicidade do pop perfeito e a complexidade melódica e harmônica dominada por apenas um punhado de gênios na história da música.
O Paul menino e o Paul maduro que segue na estrada com impressionante forma e vitalidade são espelhados em In Spite of All the Danger, faixa gravada em 1958 por ele, Lennon e Harrison nos Quarrymen (na Capital, apresentada por ele como primeira gravação com os Beatles, o que é, no frigir dos ovos, uma verdade), e no hit FourFiveSeconds, parceria de 2015 com Kanye West, cantada pelo rapper e por Rihanna. Dos Wings, sua casa pós-Beatles, compareceram as confirmadas Jet, Let me Roll it, Band on the Run e Live and Let Die.
Paul faz de seu espetáculo também uma celebração de afetos. Lembrou suas mulheres e musas com Valentine (para a atual, Nancy Shevell) e a estupenda Maybe I’m Amazed (dedicada a Linda, seu amor infinito enquanto ela viveu). Ainda prestou homenagens a seus estimados parceiros mortos: o produtor George Martin (Love me Do), John Lennon (Here Today) e George Harrison (Something).
O mau tempo que reinou sobre Porto Alegre nos dias que antecederam o show parece ter se intimidado diante da presença de Sir Paul. A chuva caiu de forma esporádica e sem grande intensidade durante a apresentação. E, mais uma vez, Paul mostrou que o rigor profissional e o talento criativo nos quais moldou sua trajetória se complementam no carinho que dedica aos fãs.
Durante a passagem de som, na tarde de sexta – já havia ensaiado sob chuva na noite de quinta –, fez um miniconcerto para dez radiantes vencedores de uma promoção da rádio Atlântida, que depois foram tirar foto com ele no backstage, e um grupo de estudantes de Música da UFRGS.
Com os dez sortudos, Paul brincou, conversou, consolou os que choravam, explicou os benefícios de ser vegetariano à uma garota que disse ter mudado hábitos alimentares inspirada nele, e ainda cantou com a turma uma animada versão à capela de All my Loving.
O alto astral de Paul esparrama-se por sua equipe, dos seguranças particulares ao staff mais íntimo, todos sempre cordiais e brincando uns com os outros. Perguntado pela reportagem se a chuva tinha atrapalhado a logística do show em Porto Alegre, um produtor disse que estavam acostumados a montar palcos em condições ainda mais extremas, de desertos a regiões cobertas por neve.
O inglês Stuart Bell, assessor de imprensa de Paul, minimizou a chuvarada gaúcha:
– Esse é um dia normal para nós britânicos. Estranhamos é quando tem sol.
Como já havia antecipado em entrevista a GaúchaZH, Paul se puxou nas lições de português. Falou no palco do protocolar “obrigado” aos esforçados “é bom estar de volta”, “esta é uma canção de nosso disco mais recente” e “está na hora de partir"). E faz uso do tempero local (“obrigado gaúchos e gaúchas”, “bah”, “tri legal” e “tri bom”).
A essa altura da vida, Paul empenha-se nessa interação com os fãs com visível prazer e bom humor. Desde o auge da beatlemania, tornou-se esse gigante que é alimentado por paixão, lágrimas e gritos. E retribui com atenção, carinho e canções que geram mais lágrimas e gritos. É um ciclo sem fim que se retroalimenta para manter os corações sempre em chamas.