"É bom estar de volta", saudou sir Paul McCartney, em bom português, depois de desfiar as três primeiras canções do show desta sexta-feira (13) histórica no Estádio Beira-Rio. O aguaceiro que desabou sobre os Rolling Stones em 2016 repetiu-se antes da segunda apresentação do músico britânico em Porto Alegre, mas deu uma trégua durante a maior parte do espetáculo. Da chegada na Capital, na quarta-feira (11), à noite de sexta, o ex-beatle, de 75 anos, aguardou sob chuvas e trovoadas — sem perder o bom humor — o instante de subir outra vez ao palco do Beira-Rio. Os fãs, por sua vez, também demonstraram resistência e empolgação, apesar do mau tempo e da lentidão das filas de acesso ao estádio. Quando o show começou, às 21h05min, muita gente ainda estava entrando no Beira-Rio.
Antes de cantar a poderosa I've Gotta a Feeling, famosa por sua versão ao vivo no telhado da gravadora Apple, Paul voltou a falar português para agradecer aos fãs de todas as idades que lotavam o estádio: "Obrigado, gaúchos e gaúchas". (No meio do show, soltou ainda um "tribom", em bom gauchês, para delírio da plateia.) Como introdução para Blackbird, canção composta sob inspiração dos conflitos raciais dos anos 60, Paul contou que a música era sobre direitos humanos e observou: "Nós precisamos disso, certo?". Foi a deixa para que parte do público puxasse um coro de "Fora, Temer" no estádio. No final do espetáculo, antes do bis, outro momento político: Paul voltou para o palco com as bandeiras da Grã-Bretanha, do Brasil e do movimento LGBT.
Do tempo pré-Beatles à parceria com Kanye West
Como já havia mostrado em seu antológico espetáculo de 2010, Sir Paul, calejado nos seus 57 anos de estrada, não é de se mixar diante de percalços que cruzam seu caminho. Na comparação com o show anterior no Beira-Rio, Paul McCartney apresentou, além de mais canções, um repertório bastante generoso, lapidado em clássicos dos Beatles. De standards onipresentes como Something (momento da homenagem a George Harrison), Hey Jude (com direito a "bah" e "trilegal" durante o clássico coro de "na-na-nás") e Let it Be (que iluminou o estádio com a luz dos celulares, em vez dos isqueiros), a faixas que lembraram o cinquentenário do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, como A Day in the Life e Being for the Benefit of Mr. Kite!, até a seminal Love me Do, primeiro hit dos Fab Four, lançado em 5 de outubro de 1962, sim, 55 frescos anos recém-celebrados — Paul a canta nesta One on One Tour pela primeira vez na carreira solo.
Do prolongado acorde que introduz a primeira música do espetáculo, A Hard Day's Night, também inédita no palco para ele sem a parceria de John, George e Ringo, à epifania final do sonho da beatlemania representado por The End, Paul passeou pela ponte entre o passado o futuro da música pop, da qual foi um dos principais e mais criativos construtores. Foi do tempo pré-Beatles, com In Spite of All the Danger ("E agora vamos voltar no tempo", anunciou), faixa que gravou ainda adolescente, em 1958, ao lado de Lennon e Harrison nos Quarrymen, à recente FourFiveSeconds, parceria de 2015 sua com Kanye West, cantada pelo rapper e Rihanna — a versão mais crua e enxuta que mostra ao violão é exemplo do talento do grande compositor que não perde o fio. Paul passeou ainda pelas pérolas que registrou no começo de jornada solo, como a belíssima Maybe I'm Amazed, e joias que registrou com sua banda pós-beatles, os Wings, entre elas Band on the Run e a pirotécnica Live and Let Die, além de Here Today (momento da homenagem a John Lennon).
Nenhum outro artista no mundo sobe ao palco com um histórico desses para compartilhar com fãs de gerações tão diferentes. Paul tem capacidade de, ao mesmo tempo, honrar o glorioso passado e mostrar que seu presente e futuro são de plena atividade criativa. Faz três horas de show passarem num estalar de dedos e ainda deixa a impressão de que faltou muito mais para celebrar.
Parafraseando, em tom otimista, o triste lamento do replicante Roy no final do filme Blade Runner: todos esses momentos diante de Paul McCartney um dia se perderão no tempo, como as lágrimas na chuva. Que ocorram ainda mais encontros com esse artista gigante enquanto estivermos todos vivos. Bom sinal: Paul encerrou o show, às 23h50min, com um “Até a próxima”.