Haruki Murakami não tem apenas leitores fiéis ao redor do mudo, mas fãs. Todos anos, um grupo de admiradores de diferentes países se reúne em uma remota propriedade rural no norte do Japão para torcer pelo ídolo durante o anúncio do Nobel de Literatura – os aficionados acreditam que o lugar inspirou Caçando Carneiros (1982), romance que Murakami considera o ponto de partida de sua carreira literária.
Na verdade, Caçando Carneiros não é primeira obra do escritor japonês – embora grande parte dos seus leitores não soubesse disso até bem pouco tempo. Em 1979, a estreia de Murakami se deu com Ouça a Canção do Vento, seguido por Pinball, 1973, em 1980. Ambos tiveram boa acolhida no Japão, sendo que o primeiro foi editado depois de vencer um concurso da respeitada revista literária Gunzo e, mais tarde, chegou a ser adaptado para o cinema. A despeito da boa recepção de público e crítica e do imenso número de colecionadores dos livros de Murakami, jamais as duas obras haviam sido editadas adequadamente no Ocidente, o que só foi mudar em 2015, com uma nova tradução americana que reuniu os dois romances em um volume único, o que impulsionou editoras de outros países a fazerem o mesmo. No Brasil, a Alfaguara se encarregou do trabalho, com uma edição que chegou há pouco às livrarias.
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O atraso da chegada de Ouça a Canção do Vento e Pinball, 1973 em relação a outras obras de Murakami em tantos países se deve a uma única pessoa – o próprio Murakami. Com certo "constrangimento", o autor escreve no prefácio que considera os dois trabalhos "romances de mesa de cozinha", pois foram escritos em madrugadas na cozinha de sua casa, depois de longos expedientes no bar de jazz que mantinha. O escritor revela ainda que vê as obras como amigos de juventude: "Provavelmente não vamos nos encontrar ou conversar, mas jamais me esquecerei de sua existência".
O comentário de Murakami é injusto. Os dois romances têm uma vitalidade que não deveria constranger qualquer escritor e também apontam caminhos pelos quais o autor enveredaria futuramente. Além disso, apresentam personagens que vão seguir figurando em outras obras.
Ouça a Canção do Vento tem como narrador um jovem de 29 anos, que não revela seu nome, mas se mostra disposto a escrever um livro – é a mesma idade que Murakami tinha quando começou a escrever a obra. O personagem revê acontecimentos importantes de sua vida na casa dos 20, principalmente sua relação com mulheres, e expõe sua amizade com Rato, com quem passa tardes de férias bebendo cerveja e fumando cigarros no J’s Bar. É o retrato de alguém que busca escrever um romance, mas não sabe muito bem de que modo, e que acaba dispondo cenas e comentários aparentemente desconectados, mas que formam um belo mosaico das angústias do início da vida adulta. Além disso, temas como a falta de identidade de uma sociedade cada vez mais globalizada, bem como a dificuldade de diálogo entre amigos e amantes, discutidos em obras posteriores de Murakami, já estão presentes nas primeiras narrativas.
O narrador anônimo e Rato, que também são importantes em Caçando Carneiros e Dance, Dance, Dance (1988), voltam a aparecer em Pinball, 1973. Nesta história, o amigo de Rato já não é mais um estudante beberrão e se tornou sócio de um escritório de tradução. Os ex-companheiros de cervejadas não se encontram na narrativa, mas a amizade entre os dois ainda influencia suas vidas. O narrador está decidido a encontrar uma antiga máquina de pinball, como se o objeto fosse capaz de restituir algo subjetivo perdido no passado, e mora com duas gêmeas de estranho comportamento – há até um funeral de um quadro de distribuição de linhas telefônicas –, que dão ao romance um tom onírico, que é também marca importante de obras posteriores do autor.
Ouça a Canção do Vento e Pinball, 1973 não têm a estrutura sólida e complexa dos romances mais conhecidos de Murakami, mas a vitalidade desses dois romances curtos reside justamente aí. O leitor identifica um escritor de talento buscando colocar em ordem sua visão de mundo, com uma linguagem rápida, prolífica de imagens e bons diálogos. São romances escritos sobre a mesa da cozinha, sem esquemas estruturais muito bem definidos, mas com a urgência de quem tem algo a dizer para o mundo.
Ouça a Canção do Vento & Pinball, 1973
De Haruki Murakami
Romances, Alfaguara, 264 páginas, R$ 54,90
Cotação: 4 de 5 estrelas