Se Frank Sinatra ganhou o apelido de A Voz por seu poder de interpretação fora do comum, Bob Dylan tem fama contrária: está na potência vocal, exatamente, o seu calcanhar de Aquiles. Um dos maiores poetas da música, Dylan chegou a reclamar recentemente das críticas que recebe por não conseguir manter uma nota por muito tempo com sua voz e “soar como um sapo”, em suas próprias palavras. “Os críticos pegam pesado comigo desde o primeiro dia”, desabafou no ano passado, ao receber um prêmio no Grammy. Mas nada que tenha impedido Dylan de lançar seu segundo disco com versões de Sinatra.
Fallen Angels é o sucessor natural de Shadows in the Night, disco de 2015 e primeira incursão de Dylan nos temas que ficaram famosos pela voz histórica de Sinatra. E a ousadia volta a dar resultado: nas 12 faixas do novo álbum, o intérprete empresta sua personalidade e impõe características particulares a composições ainda mais ligadas a Blue Eyes, como All the Way e Young at Heart. Em 37 minutos, o cantor de 75 anos monta um quadro de melancolia e decadência autoirônica que é mantido com leveza e maestria por sua voz elegante. Com o estofo de uma banda talentosa e discreta, quem se destaca é o classudo Dylan crooner.
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O jornal britânico The Guardian destacou o “prazer de ouvir músicas clássicas interpretadas com classe”, e é aí que reside o mérito de Dylan em Fallen Angels: seja em rocks de protesto, em poesias românticas ou como crooner de canções de Sinatra, o músico sabe como poucos dar vida a composições e levar o ouvinte a ambientes distintos – com consciência de seus limites e suas habilidades. E é por isso que a voz de Dylan nunca foi um defeito, mas uma das ferramentas que ele soube utilizar com maior destreza.
Claro, é fácil desperdiçar o valor de Fallen Angels ao acreditar que o disco é mais uma bola de segurança de Dylan. Um segundo disco de versões, ainda mais simples que o anterior, sem arroubos de criatividade: nada mais comum. Mas é Dylan, um dos grandes narradores da cultura norte-americana, debruçando-se sobre a obra de um dos maiores intérpretes da música daquele país – e um diálogo tão interessante entre duas visões tão díspares não deve ser tratado como algo descartável.
FALLEN ANGELS
De Bob Dylan, Columbia, 12 faixas, no iTunes e nos serviços de streaming.