Michel Laub não escrevia sobre judaísmo desde Diário da Queda (2011), livro que o revelou como um dos maiores escritores contemporâneos do país. Ele próprio um judeu nascido e criado em Porto Alegre, decidiu voltar ao tema em Passeio com o Gigante, seu nono romance, que chega às livrarias nesta terça-feira (26) pela Companhia das Letras (160 páginas, R$ 69,90 o livro físico e R$ 39,90 o e-book).
Radicado há quase três décadas em São Paulo, Laub cria um personagem judeu, Davi Rieseman, tornando-o, se não um anti-herói, ao menos uma ambígua e controversa figura.
— Achei que valia voltar ao tema por questões políticas mais imediatas que não estavam no horizonte daquela época de Diário da Queda. A situação brasileira, por exemplo. Ou a pandemia. Ou Israel. Ou a ascensão dos debates identitários para um patamar inédito no Brasil. O tema judaico é identitário por excelência, assim como o tema do racismo, dos evangélicos, do extremismo de direita — explica.
Rieseman é um ativista judeu que, em determinado momento da vida, passa a aderir à extrema direita. Suas atitudes e decisões são contadas ao leitor por vozes que o relembram de sua trajetória, de forma não linear, em um processo de tomada de consciência do protagonista. Algo que o autor identifica como culpa resultante de uma cada vez mais rara mudança de opinião.
Ele queria mostrar como alguém que pertence a um grupo historicamente estereotipado acaba se ligando a ideais que, no passado, serviram justamente para violentar minorias como os próprios judeus. Para o escritor de 50 anos, é algo rico o suficiente para motivar um romance.
— Minha intenção era falar da divisão da comunidade judaica a partir da adesão de uma parte dela à extrema direita. A extrema direita historicamente fomenta o antissemitismo, ao menos aquele mais moderno. Integrantes de um povo perseguido apoiando um movimento contrário aos direitos humanos, às minorias... Não sei se o Davi é um anti-herói. Ele é um personagem que no livro é visto por muitos ângulos ou vozes, inclusive as que são fabricadas pela própria cabeça. Tomar esse caminho narrativo mais complexo me pareceu mais interessante do que escrever um panfleto, algo que posso fazer em um post de rede social.
Em uma escrita complexa e bem distante da panfletária, Laub constrói um personagem que levanta questões sobre o judaísmo que ora podem soar curiosas, ora polêmicas e até indignas. Por exemplo, a ideia de que a repetitiva divulgação de imagens dos judeus nos campos de concentração poderia ter efeito contrário ao da comiseração, servindo, no fim, ao ideal nazista. Uma camada de ironia que nada tem a ver com opiniões do autor, mas com seu talento para construir personagens tão ambíguos quanto verossímeis.
— Acho que essa abertura de sentidos enriquece a literatura. Como judeu, sou fã da cultura da dúvida, do humor angustiado que o personagem de Passeio com o Gigante critica, no qual o sentido da piada nem sempre está muito claro. Gosto dessa tradição de dúvida e angústia, me criei nela, sinto que faz parte da minha identidade. Receber críticas por isso é muito judaico também. Não existe unanimidade na comunidade, nunca existiu. Há muitas vertentes no judaísmo, seja ele religioso, secular, liberal, conservador. Em algum nível, mesmo que o livro não tenha um humor tão claro, porque trata de temas horríveis, gosto de pensar que ele pode funcionar assim também. Tratar disso é delicado, sim, mas quem faz ficção, pelo menos o tipo de ficção de que gosto, tem que ter coragem de enfrentar temas difíceis.