Gabriel García Márquez tinha um projeto literário que foi impedido pela velhice e pela perda da memória. Queria usar uma mesma personagem feminina, Ana Magdalena Bach, em cinco contos, todos protagonizados por ela. Ao morrer, em 2014, aos 87 anos, tendo os últimos capítulos de sua vida afetados pela confusão mental, deixou uma única história pronta. Sabia que o que havia concluído não estava à altura de obras que o tornaram um dos maiores escritores do século 20, como Cem Anos de Solidão (1967) e O Amor nos Tempos do Cólera (1985).
– Este livro não presta. Tem que ser destruído – disse a pessoas próximas.
Ainda bem que não foi atendido. Uma obra de Gabo é sempre uma grata leitura, ainda mais quando se trata de seu primeiro e provavelmente único livro póstumo. Publicado porque os filhos decidiram contrariá-lo 10 anos após sua morte, Em Agosto nos Vemos chegou às livrarias no dia 6, data em que o colombiano faria aniversário. No Brasil, ganhou selo da Record e tradução de Eric Nepomuceno.
Trata-se de um breve romance de pouco mais de cem páginas em que acompanhamos Ana redescobrindo a própria sexualidade quando está mais perto dos 50 do que dos 40 anos, já em um sólido casamento com filhos. Há tempos, a cada mês de agosto, ela vai de barca a uma ilha caribenha para depositar flores no túmulo da mãe. Nessas curtas viagens sozinha, tem relações casuais com homens desconhecidos.
Não há nada no livro que se pareça com as histórias fantásticas pelas quais Gabo ficou conhecido, nenhuma grande trama repleta de personagens encantados por um ideal enquanto enfrentam paixões estonteantes, pudores e mortes em um vilarejo provinciano como a inesquecível Macondo. É um Gabo mais contemporâneo e atado à realidade, com a façanha de ter criado uma personagem feminina que vive relações extraconjugais sem padecer de moralismos em um momento em que o protagonismo das mulheres é bem-vindo. Talvez mais na imaterialidade da ficção do que na vida real, é verdade.
O ponto fraco é a nítida falta de revisão na escrita de Gabo. Há momentos em que as descrições do corpo, da forma de se vestir e do comportamento ousado de Ana em suas aventuras sexuais soam piegas, deixando-a mais perto de uma personagem de romance erótico da virada do século do que de uma emancipada mulher que vive a contradição entre o carinho pelo marido e o desejo sexual por um novo amante. “Sorriu e arrematou como uma verdadeira plebeia, em desacordo com seu modo de ser” e “na primeira investida sentiu que ia morrer de dor, com uma comoção atroz de bezerra esquartejada” são trechos que soam estranhos e até cafonas ao serem lidos.
Tradutor de García Márquez e outros grandes nomes da literatura latino-americana, como Eduardo Galeano e Julio Cortázar, Eric Nepomuceno afirma que sequer sabia do romance inédito do colombiano, ainda que o próprio tivesse começado a falar do projeto em 1999. Percebeu certa deficiência, mas nada que impactasse:
– Ele costumava gastar mais tempo revisando do que escrevendo. Notei, é verdade, falta dessa revisão profunda. Mas o livro é estupendo, é García Márquez em estado puro.
As ressalvas também são feitas pelos filhos, Rodrigo e Gonzálo García Barcha, logo no prefácio do livro. “Não está lapidado como seus maiores livros. Tem alguns tropeços e pequenas contradições”, avisam. Em coletiva de imprensa realizada em Madrid, na Espanha, os herdeiros de Gabo dizem que, ao retomarem os manuscritos que estavam guardados, perceberam que Em Agosto Nos Vemos era muito melhor do que o pai havia decretado. Entenderam que, assim como a perda da memória impedia Gabo de escrever, também poderia tê-lo impedido de ler e julgar o livro de forma equilibrada.
– Concordamos que tinha ali um livro que valia muito a pena ler e que não estava totalmente finalizado, porque Gabo não foi tão polido quanto em seus maiores livros. Mas, como dizemos no prólogo, definitivamente há muitas de suas características marcantes. A bela prosa, o conhecimento do ser humano, o poder de descrição, a criação de um personagem. E também gostamos muito dessa mulher personagem em uma história tão feminista. Parecia que ele estava fazendo algo muito bom, formando trio muito bom com seus últimos romances curtos, Do Amor e Outros Demônios (1994) e Memórias de Minhas Putas Tristes (2004). Mas, ao final, serão os leitores que decidirão – disse Rodrigo.
Não há por que exigir de qualquer escritor que sempre entregue obras magistrais. Pelo contrário, é interessante analisar seus altos e baixos, sucessos, tentativas fracassadas e os trabalhos que ficam no meio disso. Ver Gabo empenhado em retratar uma mulher moderna dividida entre a manutenção de uma família e a necessidade da liberdade individual, imbuída do desejo de ser mulher para além de mãe e esposa, já vale a leitura de Em Agosto Nos Vemos, o que pode ajudar a amenizar a má impressão causada pelo seu último romance publicado em vida, Memórias de Minhas Putas Tristes, alvo de críticas por mostrar um velho homem solitário com o derradeiro desejo de deitar-se com uma jovem virgem.
Gabo constrói uma bela personagem em Em Agosto nos Vemos, uma mulher que anualmente se lança aos episódios de traição sem que a palavra seja mencionada no livro, o que traz um tom menos conservador e mais arejado à história, até porque seu marido nunca lhe cobrou nada. O final sutil, que pode soar aberto a leitores que procuram explicações claras, mostra a sensibilidade que Gabo tinha para compreender a ânsia engaiolada de uma mulher casada.