Bastou a Netflix anunciar a compra dos direitos de transformar Cem Anos de Solidão em série televisiva para o mundo cultural se agitar — e para os profetas das redes sociais lançarem em uníssono uma previsão mais sombria do que a chuva de quatro anos sobre Macondo:
— Não vai dar certo. Bons livros não rendem bons filmes.
O livro é mais do que bom, isso é incontestável. Já foi eleito por especialistas a segunda obra mais importante da literatura hispânica, atrás apenas do imortal Dom Quixote de La Mancha, do espanhol Miguel de Cervantes. Pode, sim, virar um belo filme.
Ainda assim, cabe reconhecer que os maus presságios dos fãs de García Márquez baseiam-se numa premissa lógica: o texto do colombiano contém tanta poesia e tantas imagens e situações fantásticas que será difícil transpô-las para a tela sem violentar a liberdade de imaginação dos leitores. O próprio escritor dizia que sua obra máxima perderia muito se fosse transformada em imagens. Mas seus herdeiros acabaram se rendendo ao argumento de que o formato de série permite estender a história por tantos capítulos quantos forem necessários para retratar bem todos os personagens criados pelo romancista.
Os atores ainda nem foram selecionados, mas o lançamento já está previsto para 2020 – mais de 50 anos depois da estreia do livro. O curioso é que García Márquez também usou o recurso da seriação para ter certeza de que seu romance cairia no agrado do público. Antes de concluir a história, publicou sete capítulos em jornais e revistas que circulavam em mais de 20 países, num tempo em que as publicações impressas tinham grande audiência. E teve a humildade de recolher impressões dos leitores para aperfeiçoar o texto final.
Se os produtores da série seguirem o mestre, poderão tirar proveito das críticas antecipadas. Quem sabe não vem aí uma ótima série. Se isso não ocorrer, paciência: filmes medíocres não desqualificam bons livros.