A fila de venezuelanos diante de um painel solar que fornece carga para celulares é o emblemático retrato da sociedade dependente de tecnologia em que nos tornamos. Os sucessivos cortes de energia elétrica na Venezuela, motivados pela disputa de poder político, causam consequências bem mais graves para os nossos vizinhos, entre as quais a morte de pacientes em hospitais, a deterioração de alimentos já escassos por causa da crise prolongada e até mesmo a falta de combustível veicular num país assentado sobre generosas e cobiçadas reservas de petróleo. A esses horrores, que justificam plenamente o êxodo de venezuelanos para outros países, junta-se agora o grande temor do homem moderno, que é a suspensão do acesso à internet.
Ainda que pareça – e seja mesmo – um mal menor na comparação com as ameaças à vida e à alimentação das pessoas, a interrupção da comunicação digital também gera danos irreparáveis para todos. Os celulares são hoje equipamentos indispensáveis para o funcionamento de diversas atividades profissionais e para os contatos pessoais. Sem energia elétrica para mantê-los ativos, todo o sistema desmorona. Não é difícil prever que um apagão mais demorado pode provocar a falência de negócios, mais desemprego, desencontros de toda ordem e o agravamento dessa doença coletiva chamada ansiedade.
Como nenhum país está livre do risco de apagões acidentais ou provocados, o Brasil já deveria ir se prevenindo: painéis solares, urgente!
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Da realidade à ficção: o português José Saramago imaginou um país afetado pelo apagão da morte. Durante determinado período, a indesejada das gentes fez greve. Ninguém mais morria. No primeiro momento, as pessoas exultaram, imaginando que finalmente haviam conquistado a vida eterna sem precisar passar pela volta ao pó. Logo, porém, começaram a se dar conta de que apenas prorrogavam o sofrimento insuportável da degradação física. As doenças, os acidentes e a velhice continuavam vigendo, com a diferença de que ninguém passava desta para melhor.
Foi um horror. O país transformou-se num verdadeiro "cemitério de vivos", uma das expressões utilizadas no livro. O sistema hospitalar ficou sobrecarregado de tal maneira, que o governo precisou criar uma legislação obrigando as famílias a cuidarem de seus doentes em casa. Negócios desapareceram e empresas faliram, a começar pelas especializadas em serviços funerários. Seguro de vida, por exemplo, passou a ser coisa de otário.
Em meio à crise, um idoso desesperado para morrer pediu aos parentes que o transportassem para o país vizinho, pois a greve da morte limitava-se às fronteiras nacionais. Assim foi feito. Tão logo cruzou a linha divisória, o paciente expirou. Condenado num primeiro momento, o gesto dos familiares passou a ser imitado por outras pessoas que também não suportavam mais o sofrimento de seus doentes. O êxodo ganhou um slogan: "Antes a morte do que tal sorte".
Por aqui, o êxodo é pela vida.
Mas As Intermitências da Morte, de José Saramago, continua sendo uma leitura imperdível.