A obra de um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa caiu em domínio público e passará a circular em novas edições. Completados 70 anos da morte de Graciliano Ramos (1892-1953), autor de Vidas Secas (1938), livro magistral sobre fome e pobreza no sertão, os outros três romances, dois livros de memórias e diversos textos consagrados e ainda inéditos do escritor alagoano conhecido pela prosa seca e sem floreios também devem ganhar novas roupagens, tendo a chance de conquistarem mais leitores.
Um dos projetos mais ambiciosos é o da Todavia. A editora convidou um estudioso da obra de Graciliano, Thiago Mio Salla, para organizar a coleção, editar os livros e escrever os textos de apresentação. Em janeiro deste ano, quando a lei do domínio público passou a valer para Graciliano, foi lançado Angústia (1936), seu romance urbano e o mais editado enquanto esteve vivo. Em fevereiro, um texto inédito chegou às livrarias: o juvenil Os Filhos da Coruja, escrito antes de todos os seus romances e adaptado de uma fábula do francês La Fontaine, A Águia e a Coruja. Em abril, é vez do clássico Vidas Secas.
Coordenador de projetos no Fundo Graciliano Ramos do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), Salla já publicou Garranchos (2012), uma reunião de mais de 80 textos inéditos de Graciliano escritos em diferentes períodos de sua vida, além de Conversas (2014) e Cangaços (2014), com entrevistas e mais inéditos, ambos organizados e editados em parceria com a pesquisadora Ieda Lebensztayn. Todos saíram pela Record, que detinha os direitos de toda a obra do autor e lançou, em novembro de 2023, um box especial com S. Bernardo (1934), Angústia e Vidas Secas, os mesmos três romances lançados recentemente pela Companhia das Letras.
Absorto nos arquivos do IEB, espaço que contém todo o acervo de Graciliano, só recentemente Mio Salla deu-se conta de que havia um material assinado por outro nome, um tal de J. Calisto, que se tratava do próprio Graciliano escondido atrás de um pseudônimo.
— Os Filhos da Coruja foi uma descoberta recente, do ano passado. Constava como se fosse um documento de terceiro, assinado por J. Calisto, pseudônimo que Graciliano usou nos anos 1920. Não foi percebido, nem mesmo por mim, que estou debruçado sobre os inéditos dele há anos — conta.
Fábula ganha versão mais política
Trata-se de uma fábula em versos em que Graciliano reinterpreta La Fontaine. Se na versão original temos uma coruja tão zelosa de seus filhotes que acaba os descrevendo mais bonitos do que realmente são, a ponto de a águia faminta não identificá-los e, por isso, devorá-los, Graciliano faz uma versão mais política e tingida pelas características do sertão nordestino. Trocando águia por gavião, o comunista que chegou a ser preso em 1936, quando ainda se desenhava a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, cria uma fábula que incentiva os menores a tomar conhecimento de quem são para evitarem ser devastados pelos mais poderosos. A Todavia publica o livro com ilustrações de Gustavo Magalhães.
— Na crônica de Graciliano, embora o desfecho seja parecido com a fábula de La Fontaine, a lição é muito diferente. É para que as corujas tomem consciência de si mesmas de forma a evitarem serem trucidadas pelos gaviões que existem por aí. A coruja e o gavião, alegoricamente, podem representar os de baixo e os de cima. O texto de Graciliano apela para essa conscientização, para que as corujas ajam para se protegerem dos gaviões — diz Mio Salla.
Angústia e Vidas Secas também ganham edições especiais da Todavia. Romances distintos de Graciliano, que no primeiro se volta para a vida urbana e no segundo para o sertão, os livros são acompanhados de resenhas de Antonio Candido, maior crítico literário do Brasil e que dedicou um texto para cada obra do alagoano lançada em vida. As análises foram publicadas na seção que Candido manteve no Diário de São Paulo, agora reunidas em livro pela primeira vez.
O projeto da Todavia prevê o lançamento de dois a três livros de Graciliano Ramos no ano que vem. Caetés (1933) e S. Bernardo, seus outros dois romances, e os dois livros de memórias lançados em vida, Infância (1945) e Memórias do Cárcere (1953), estão nos planos da editora, mas há uma porta aberta para que novidades surjam na frente, sempre com a intenção de que novos públicos descubram a importância do alagoano e que os já fisgados conheçam novas facetas.
— Graciliano Ramos se diferenciava como um artista que não só procurava representar as mazelas do interior do Nordeste mas também se preocupava com a forma. Mesmo em vida ele já era considerado um clássico, alguém que conseguiu consolidar um estilo. Ele conseguia tratar de modo crítico as questões sociais e de forma artística, sem fazer panfleto — diz Mio Salla.