O tema é quase proibido e preenche o leitor de sensações ruins. O novo livro da escritora mineira Maria Esther Maciel já seria indigesto se o personagem violento do âmbito doméstico fosse o homem, como o pai ou o marido. Essa Coisa Viva desarranja as peças de um núcleo familiar de quatro pessoas e ataca um dos conceitos mais firmes, idealizados e celebrados através dos tempos: o do amor materno. É a mãe a personagem que agride, física e psicologicamente, a filha. A literatura tem profusão de enredos sobre essa relação, com dramas variados, mas é raro que um romance se ocupe de uma genitora que não presta.
O romance de Maria Esther começa quando se completa um ano da morte da mãe quase sem nome. Ana Luiza, a narradora, revê o passado de abusos e acrescenta a culpa e a dor do luto às memórias de muito ressentimento. "As cicatrizes permanecem como vestígios do que tentamos esquecer, pois é impossível que a experiência passada emudeça para sempre", constata. Em tom confessional, ela revê a relação das duas em diversas (más) fases da vida. "Como neutralizar as lembranças nefastas e os sentimentos adversos que me levam a escrever isto que escrevo a você?", questiona-se. O relato tem início em meio à pandemia, em um cenário onde a morte se tornara comum.
Nascida a fórceps, a primogênita se torna a "feia, magrela, encardida" com a chegada do irmão. A menina apanhava da mãe por qualquer motivo — ou até na ausência de um —, crescendo em um estado permanente de tensão e medo, sempre com a pele ardendo. Ficava ajoelhada em grãos de milho, com os braços abertos, diante de uma parede, sob vigilância. As agressões estavam presentes até em sessões de fotos de família, quando era coagida a sorrir para o fotógrafo. O colo lhe foi negado em momentos de desamparo, como durante o choro provocado pelo tombo da bicicleta.
Ana Luiza carrega até no nome um abuso: fora registrada, por engano, como Luísa, mas passou a ser obrigada a assinar Luiza. No vestibular, a adolescente não teve tempo de celebrar a aprovação, sendo oprimida por uma revelação da mãe que drenou a alegria pela conquista. O martírio seguiu a protagonista nas diferentes fases da vida adulta, recebendo telefonemas repletos de queixas e pedidos, além da presença intrusiva dentro de casa: "... Meus dias ficavam pelo avesso. Você parecia se dar conta disso, mas não estava nem aí para a bagunça que aprontava o tempo todo, as roupas espalhadas pelo quarto, as folhas usadas de papel higiênico que transbordavam da lixeira do banheiro, os molhos derramados na toalha de mesa, as marcas de mãos deixadas nos espelhos, as torneiras abertas, os sapatos largados na sala."
O carinho possível ficou restrito a cenas breves, "nossos raros instantes de afinidade sem dissídio, de afeto sem ficção", como quando a filha dava presentes à mãe, numa espécie de compra de momentos de afeto, o que garantia uma sequência de dias de trégua e manifestações de gratidão.
Essa Coisa Viva deixa evidentes as sequelas que extrapolam o aspecto físico: "... Conseguiu me afastar de mim mesma, tal como tinha afastado meu pai de si próprio, em ampla e preocupante medida. Por conta disso, durante muito tempo deixei de saber o que ou quem eu era realmente, se era boba ou corajosa, feia ou mais ou menos bonita, indigna de seu amor ou merecedora dele."
A reação de Ana Luiza, ainda que instável, parece surgir nos sentimentos conflitantes que confidencia no transcorrer do monólogo. Ela admite ter sempre voltado atrás, por "incompetência ou fraqueza", "aliviada e culpada". "Repito que, por mais que eu tente transformar sua ausência em saudade e alojá-la dentro de mim, com o carinho de uma filha de verdade, não dou conta de me desvencilhar de sua ambígua existência em minha vida, ou da minha ambígua existência na sua."
Essa Coisa Viva é isto: dor, luto, mágoa, raiva, culpa. Lembranças.
Essa coisa viva
De Maria Esther Maciel. Editora Todavia, 128 páginas, R$ 59,90 o impresso e R$ 39,90 o e-book