Quando mais dúvidas do que certezas habitavam as cabeças das pessoas com o anúncio da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre uma pandemia do então novo coronavírus, em março de 2020, obter informações era fundamental. Na época, umas das pessoas mais requisitadas no Brasil para dirimi-las era o doutor em Microbiologia e pós-doutor em Virologia Atila Iamarino. Sua experiência com estudos sobre a evolução do zika vírus e do ebola, por exemplo, aliada a uma comunicabilidade didática acerca do assunto, contribuiu com a disseminação de conhecimento a respeito da covid-19. Atualmente, ele mantém um canal no YouTube, o podcast Não Ficção, que tem mais de 1,6 milhão de inscritos. O biólogo, que tem 39 anos, foi o primeiro palestrante confirmado na BrazilJS, maior evento de tecnologia da América Latina, que ocorrerá em 25 e 26 de abril no Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre. Iamarino concedeu entrevista a seguir para GZH sobre suas vivências na crise sanitária, o contexto da ciência no país e se podemos esperar uma eventual nova pandemia nos próximos anos.
Como se tornar um divulgador científico em um país onde a ciência tem tantas dificuldades estruturais e de falta de investimento?
É uma experiência bem diferente de ser um divulgador nos Estados Unidos ou na Inglaterra, onde vemos movimentos organizados, fruto de projetos. Quando eles diagnosticaram que, para se recuperar da Segunda Guerra, os países dependiam de ciência e tecnologia, eles passam a fazer pesquisa. A população não estava tão bem informada sobre isso, então, perceberam que deveriam fomentar livros, programas de TV e de rádio, além de outras iniciativas de divulgação. No Brasil, temos excelentes iniciativas, mas elas são mais individuais. Apesar de ser um país que financia pouco a ciência, temos no país ótimas pesquisas e cientistas muito bem formados e informados. A ciência é feita principalmente com verba pública, então, fazer divulgação tem um senso de dever público de trazer de volta para as pessoas o que elas estão financiando. Os últimos anos de cortes, cada vez mais brutais, do financiamento da ciência mostram que, se a gente não mostra para as pessoas onde esse dinheiro está indo, se não deixarmos claro sobre as vacinas que as pessoas recebem, que elas vêm de pesquisa, as pessoas não vão dar por falta depois quando essa verba é cortada.
Como você avalia o momento atual da ciência brasileira?
Estamos em um período pós-guerra, literalmente. Porque o governo federal travou uma guerra contra a ciência nos últimos anos e massacrou a pesquisa, tanto com cortes de verba alocada, quanto, mais ainda, na verba executada. Parece besteira separar dessa forma, mas é importante: tivemos mais de um ano onde havia um recurso prometido para as universidades e, na hora de ser executado, não acontecia. Então, você tinha laboratórios que contratavam pessoas e traziam bolsistas, compravam reagentes e, na hora de a verba ser liberada, ela não vinha. Além de não receber, as universidades ainda se tornavam devedoras, porque não podiam pagar fornecedores. Perdemos cientistas, manutenção, linhas de pesquisa que dependiam de financiamento continuado e perdemos a reputação. Temos um trabalho duro pela frente. Mesmo em um bom cenário de financiamento à pesquisa, será complicado chegarmos ao patamar positivo do meio da década de 2010. Havia um “plano nacional de deixar as pessoas contaminarem”. O Brasil saiu com 700 mil mortes. É muita gente, e seria muito mais se não fossem órgãos de saúde e de pesquisa. Acho que perdemos a oportunidade de deixar claro para as pessoas que, além da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e do Instituto Butantan, deveria ter nome de muitas universidades na boca das pessoas.
Você já afirmou que há dois fatores preocupantes no processo de desinformação: um no âmbito de quem consome, outro no de quem a financia e produz. Como isso se deu durante a pandemia no Brasil?
Tem um movimento de desinformação mundial, muito coordenado, azeitado e financiado, que começa com desinformação sobre cigarro, vacinas e deságua na desinformação sobre mudanças climáticas e ambientais. E esse movimento ganhou tração, financiamento e posição política no Brasil. Uma máquina muito bem coordenada com cursos de formação, grupos de estudo para orientar deputados, senadores, vereadores ou quem for sobre como mentir sobre mudanças climáticas e como distorcer dados de queimadas. Uma máquina que trabalha para aumentar o impacto ambiental no país com desmatamento, extração de madeira e garimpo. Para as pessoas não se vacinarem, promovem a falsa ideia da cura com tratamento precoce, ozonioterapia e outras estratégias. Quem diz às pessoas para elas não se imunizarem com vacina pública, distribuída pelo SUS, de forma segura e eficaz, ganha muito dinheiro. Normalmente, cientistas tendem a assumir que quem desinforma é uma pessoa bem-intencionada e mal-informada. Não! Quem desinforma, principalmente em grandes grupos e grandes canais das redes sociais, são pessoas mal-intencionadas e muito bem informadas.
Cientistas tendem a assumir que quem desinforma é bem-intencionado e mal-informado. Não! Quem desinforma, principalmente em grandes grupos e canais nas redes sociais, são pessoas mal-intencionadas e muito bem informadas.
A OMS já declarou o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) referente à covid-19. Mas isso não significa o fim da pandemia. Quando poderemos decretar, de fato, que passou?
Para muitas doenças, nunca saímos de uma pandemia. A gripe tem ondas todos os anos. Vivemos uma pandemia de HIV que matou muitas pessoas de aids e mata muito menos agora. O que acontece é que, apesar da pandemia, há vacinas, no caso da gripe, e tratamentos, no caso do HIV. A não ser que saia uma nova vacina muito mais esterilizante que realmente bloqueie o vírus e a transmissão, a gente ainda deve continuar nessa pandemia de gripe por muito tempo. No caso do HIV, terapias recentes são excelentes para impedir, inclusive, a transmissão do vírus. Com a covid-19, o vírus evolui muito rápido ainda e tem muita transmissão mesmo entre vacinados, mas felizmente com muito menos letalidade. Um problema são as pessoas que, mesmo com covid, continuam circulando e transmitindo vírus porque se sentem melhor agora, por conta da vacina. É um ciclo parecido com o da gripe, em que todo o ano há ondas de transmissão do vírus. A não ser que se mude as vacinas e haja alguma estratégia nova contra o vírus, devemos continuar nessa pandemia pelos próximos anos, talvez décadas. O reforço da vacina tem de ser anual para a maioria das pessoas e, para as mais vulneráveis, o reforço tem de ser a cada seis meses. Para as pessoas mais velhas ou crianças, o ideal é estar atento ao calendário vacinal e segui-lo para ter a melhor proteção possível. Felizmente, estamos há mais de dois anos com o vírus circulando e grande parte da população mundial vacinada nesse período e, até agora, não vimos nenhuma linhagem que tenha um escape da vacina tão grande que volte a causar casos mais graves. Enquanto as vacinas impedirem caso graves, conseguimos levar uma vida normal ou muito próxima do normal.
Você ganhou exposição e notoriedade na pandemia. O que mais o chateou em meio a esse turbilhão?
Parte dos efeitos negativos da exposição é o resultado de furar bolhas. Vi muita reação negativa quando falei, em abril de 2020, que, pela falta de vacinas, pelas projeções da maneira como o vírus se comportava e pela imunidade contra outros tipos de coronavírus, era muito provável que a gente continuasse com o coronavírus circulando por anos. Para a maioria das pessoas, foi uma coisa escandalosa, porque havia aquele modelo mental de que nos fecharíamos por 15 dias e, depois, a doença desapareceria magicamente. Essa revolta com o que estava sendo falado é compreensível, faz parte, são pessoas que não estão não têm acesso à informação científica que eu tenho. Montagens, memes, distribuição de mentiras, tudo isso era esperado. Duas coisas eu não esperava: o governo brasileiro trabalhando para matar pessoas e você ver iniciativas como impedir a entrada de vacinas, atrasar, não responder, impedir o transporte de água potável e sabonete para a comunidades indígenas. Ver órgãos de medicina promovendo essas coisas, quando já se tinha os números. Outra coisa que me marcou muito foi ver o potencial das informações que detínhamos e, ainda assim, as pessoas se apegarem às fake news e pagarem até com a vida por isso. Minhas informações no SUS foram apagadas, gente promoveu racismo com meus dados ou dados dos meus pais. Tudo isso veio no pacote desse ataque do governo brasileiro contra a população durante a pandemia.
E quais os aspectos positivos que você sentiu com o reconhecimento do trabalho no período?
Vejo vários, e um dos mais legais é o de poder mostrar como funciona o processo de descoberta de informação na ciência. Tentei ser o mais acessível e usar termos mais claros nas plataformas e na imprensa. Mais do que mostrar a ciência como uma coisa mágica que traz todas as soluções que caem no nosso colo, é mostrar como são órgãos de pesquisa, pessoas que levantam perguntas, testam e veem como isso funciona para, depois, adotar as medidas. Deu muito orgulho apresentar quem estava na linha de frente, produzindo conhecimento, para dar entrevistas. Eu replicava esse conhecimento para o grande público. Os resultados são os melhores possíveis, ver gente que mudou a conduta durante a pandemia por conta do que eu falava. Ver boas pessoas sendo replicadas e promovidas pela imprensa, que trabalhou junto com os cientistas, foi fantástico.
A Covid-19 acabou “escondendo” outras epidemias e surtos pelo mundo. Quais são as mais perigosas e onde estão infectando mais?
Tem duas frentes: as mais conhecidas, com as quais a gente já criou familiaridade e, por isso, nem presta tanta atenção nelas, e as mais desconhecidas, com potencial exótico de causar um problema. A dengue é um problemão, voltamos a ter caso de dengue e haverá mais ainda por conta da reprodução contínua dos mosquitos, agora que temos um clima mais quente que permite mosquitos num numa área maior do globo. Onde a dengue é viável, outros vírus, como chikungunya, zika e febre amarela, também são. Por isso, a importância da vacina. As infecções sexualmente transmissíveis então crescendo, como é o caso da sífilis, que volta porque as pessoas estão deixando de usar preservativo. Em parte, por não terem mais medo de HIV. Há outras doenças que já foram combatidas e voltaram a aparecer agora por conta dessa perda de medo, que inclui sarampo, pólio, coqueluche, que poderiam ser barradas pela vacinação. Dentro dos vírus exóticos, alguns que chamam atenção, como o ebola, o vírus da varíola do macaco. Mas as doenças mais alarmantes, nos últimos anos, são surtos anuais de gripe aviária matando aves e mamíferos ao redor do mundo. Apareceu no Brasil há pouco tempo. É muito mais preocupante porque, se entrar em contato com humanos e for transmitida, tem potencial de causar algo próximo ao que a gente viu com a covid-19, mas com índice de letalidade bem maiores.
A ciência já consegue “prever” a próxima grande epidemia?
Pode haver uma doença nova que é um “desconhecido-desconhecido”, uma coisa que você nem sabia que podia existir e que nem podia imaginar que ela ia circular dessa forma. Mas é raro isso acontecer. O HIV foi um caso desses na década de 1980. Temos, ainda, o “desconhecido-conhecido”, quando você não sabe exatamente o que esperar, mas entende as condições que estão ao redor disso. Essa é a situação para a maioria das possíveis pandemias futuras. Para ser uma pandemia que causa problema rápido que atinge a tantas pessoas, tem que ter uma transmissão pelo ar. Por conta da Sars (síndrome respiratória aguda grave), que é o parente mais próximo da covid, a gente já conhecia o grupo dos coronavírus, já tinha uma noção de coronavírus em animais, já tinha uma expectativa para região da Ásia, onde esse vírus poderia acontecer. A reação rápida da ciência se deu muito porque a gente não passou a lidar com um problema totalmente inesperado, pelo contrário, muita coisa ali já era esperada. Uma analogia: não tenho como esperar uma tempestade de areia, um maremoto, um terremoto ou um vulcão no RS, mas eu sei que chuva e temporais são esperados no Estado. É incerto saber quando e como acontecerão, mas temos uma boa noção de onde e por que ocorrem. O futuro das pandemias será assim. Dificilmente seremos pegos de calças curtas.
Uma analogia: não tenho como esperar uma tempestade de areia, um maremoto, um terremoto ou um vulcão no RS, mas eu sei que chuva e temporais são esperados no Estado. É incerto saber quando e como acontecerão, mas temos uma boa noção de onde e por que ocorrem. O futuro das pandemias será assim. Dificilmente seremos pegos de calças curtas.
De onde veio a paixão pela biologia?
Eu via programas tipo O Mundo de Beakman e O Professor, que passavam na TV Cultura, tinha revistas dos Mini Monstros. Mas, para mim, o maior incentivo para a ciência é que eu não perdi essa curiosidade infantil que a gente tem, de entender como o mundo funciona. Canalizei para a biologia, a ciência mais legal de todas. Ela é cheia de “dependes”, de “poréns”, de complexidades, e a gente vive com o resultado da evolução da biologia na nossa vida. E ainda tenho curiosidade por física, matemática, geografia, química, ciências sociais e como tudo funciona.
Como foi a ideia de compartilhar o conhecimento científico na internet?
Vejo o meu filho o tempo todo querendo saber coisas e falar para todo mundo o que ele viu, apesar de ter só dois anos e meio de idade. Acho que ainda estou nessa fase infantil de querer entender como funciona e contar para as pessoas o que eu descobri. Antes e depois da pandemia, a curiosidade continua presente, sendo aplicada para outras coisas. Daí a minha satisfação em compartilhar isso, seja dando aula, divulgando, conversando com outros ou criando vídeos e podcasts. Esse senso de maravilhamento com o desconhecido segue presente aqui e espero levá-lo para muita gente.
Hoje você apresenta o podcast Não Ficção, mostrando que tecnologia, ciência, sustentabilidade e saúde, por exemplo, não são temas de ficção científica e afetam nossas vidas. Como você observa o comportamento das pessoas em relação a isso?
O nome do podcast é uma mistura de várias coisas: entender que o que falamos ali não é ficção, que descrevemos a realidade e que essa realidade pode ser entendida pela ciência, ao mesmo tempo, deixando claro que tudo o que não for ficção vai aparecer na conversa. Não são só ciências duras, biológicas, físicas – o que normalmente se entende quando se fala no assunto – mas também ciências sociais, humanidades, história. O papel do podcast é trazer especialistas e mostrar que vários problemas do cotidiano, incluindo habitação, tempo de trabalho, salário, a epidemia de obesidade, a depressão, tudo pode ser descrito pela ciência.
Estamos em um mundo em que está cada vez mais fácil tomar atitudes individuais que te poupam das consequências e, com isso, atrasam, adiam e evitam as soluções coletivas.
Sua palestra no BrazilJS abordará, entre outras coisas, sobre como as mudanças da tecnologia são uma analogia para a vida. Pode adiantar alguns exemplos disso?
A tecnologia pode ser descrita por processos naturais, inclusive evolutivos, que pode dar ferramentas para termos ideias de como programar as coisas, resolver os problemas, desenvolver os sistemas, nos prepararmos contra vírus e antivírus, virtuais e reais. A ciência avançou muito em muitas frentes e estamos nessa fase, agora, de trazer para o grande público esse avanço todo. Discutimos muita a ciência do começo do século passado, como (“o pai da bomba atômica”, Robert) Oppenheimer, por exemplo, que é fundamental, mas muita coisa aconteceu depois que é legal de levar para as pessoas. Então, a minha palestra tem um pouco esse papel de levar para o pessoal da tecnologia como as coisas funcionam quanto à evolução na biologia. Falar: “Olha aqui, ó, quanta ideia legal e que pode enriquecer no que vocês aplicam no seu dia a dia”.
Tivemos, com a pandemia, a oportunidade de ter várias mudanças na humanidade, desde as higiênicas até as comportamentais. Aprendemos? Nós nos tornamos mais humanos? Ou o isolamento social acabou nos deixando mais individualistas?
Sim e não. Aprendemos algumas coisas muito importantes como instituição científica acadêmica, aprendemos a canalizar recursos humanos e financeiros para desenvolvimento de vacinas, medicamentos e testes. É um sistema que, com certeza, estará muito mais pronto para a próxima pandemia. Aprendermos a agir coletivamente, valorizar a ciência em grande parte e fazer uma boa colaboração entre imprensa, ciência e agentes públicos de saúde para agir. Quanto a aprender a ser mais humanos, acho muito complicado por uma série de motivos, e um deles é que a pandemia foi muito rápida. Ainda estamos nessa fase de choque coletivo, em que a gente pensa muito pouco sobre como aconteceu. Foi assim no passado, com a pandemia de 1918 (gripe espanhola): as pessoas apagaram isso da história e não falavam sobre esse episódio por muito tempo. Temos um modelo econômico e de desenvolvimento atual que responsabiliza as pessoas individualmente e diz “cada um que se vire”. Estamos em um mundo em que está cada vez mais fácil tomar atitudes individuais que te poupam das consequências e, com isso, atrasam, adiam e evitam as soluções coletivas.