Apenas 19 brasileiros estão na Highly Cited Researchers 2023, lista dos pesquisadores mais citados do mundo, divulgada pela empresa de análises Clarivate – e Luis Augusto Paim Rohde é um deles. Rohde, 58 anos, é professor de Psiquiatria na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diretor do Programa de Transtornos de Déficit de Atenção/Hiperatividade no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e vice-coordenador do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD). É também professor da pós-graduação em Psiquiatria na Universidade de São Paulo (USP) e organizador de 10 livros sobre saúde mental de crianças e adolescentes, somando 46 mil citações e um total de 470 artigos científicos publicados. Ele recebeu GZH para esta entrevista na qual fala sobre a dimensionalidade dos transtornos mentais, a atual situação dos diagnósticos no Brasil, os desafios trazidos pelas redes sociais e o panorama de saúde mental de crianças e adolescentes.
Para onde nós estamos caminhando em relação à saúde mental?
Estamos em um momento crítico, em que, após a pandemia, houve um incremento enorme de problemas de saúde mental, principalmente de ansiedade e depressão nos jovens. Temos como desafio enfrentar e buscar soluções para essas questões.
O senhor é um defensor de que há diferentes graus para transtornos mentais, como no transtorno do espectro autista, em oposição a conceitos dicotômicos. Pode elaborar essa ideia?
Cada vez mais a gente entende que os transtornos mentais são entidades dimensionais na população. O que é um diagnóstico dicotômico em medicina? Infecção por covid-19: ou tu tens ou não tens o vírus; gravidez: ou tu estás grávida ou não. Quanto às questões de saúde mental, a grande maioria, se não a totalidade, ansiedade, depressão, desatenção, são dimensionais na população, ou seja, se distribuem em uma curva de altura, desde os mais baixos até os mais altos, em que a gente coloca pontos de corte arbitrários quando a intensidade de sintomas está associada a prejuízo funcional na vida do indivíduo. A saúde mental é vista dentro dessa dimensionalidade. Existem graus, ela vai em um contínuo, desde manifestações atencionais que são normais na população, ou de ansiedade, que servem para sinalizar um perigo iminente e que são até adaptativas. Há momentos em que a gente pode ficar mais triste de uma forma também adaptativa, e há situações mais graves, com prejuízo funcional na vida da pessoa.
Em função disso, mais diagnósticos se tornam algo mais comum?
O diagnóstico é cada vez mais complexo, porque é preciso diferenciar o que é considerado a normalidade de onde começa a psicopatologia. Por isso essa discussão, por exemplo, no transtorno do espectro autista. Hoje a gente vê um incremento na prevalência, porque é difícil determinar exatamente onde é que começa o prejuízo e onde é que são variações ou traços que são, de certa forma, típicos dentro da população.
O senhor participou do grupo de trabalho para definição dos critérios diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e Transtornos Disruptivos da Associação Americana de Psiquiatria. Pode-se dizer que há hoje um excesso de diagnósticos?
Hoje nós estamos reconhecendo muito mais os diagnósticos psiquiátricos. Muitas das questões psiquiátricas que eram vistas de forma estigmatizada, antigamente, como a área de TDAH, na qual as crianças e adolescentes eram vistos como preguiçosos, burros, mal comportados, nós estamos conseguindo identificar que, na verdade, são quadros de neurodesenvolvimento, de TDAH. A gente reconhece mais essas questões. Eventualmente, em situações focais, tu podes ter excessos de diagnósticos psiquiátricos, mas, certamente, em termos de saúde pública, no Brasil, nosso problema é o subreconhecimento e o subtratamento de condições psiquiátricas. Fizemos um estudo de doutorado com o professor Marcelo Schmitz em 12 escolas públicas de Porto Alegre, na identificação de potenciais casos de TDAH. Elas triaram 500 alunos para que a gente pudesse avaliá-los. Desses, a gente avaliou cuidadosamente, e cem tinham diagnóstico de TDAH. Desses, apenas três haviam sido diagnosticados previamente e apenas um tinha tratamento prévio. Isso em Porto Alegre, que é um centro de tratamento e de pesquisa em TDAH. Imagina o que acontece no resto do Brasil, nos interiores. Então, a gente tem de ter muito cuidado para falar sobre isso. Não há proliferação do diagnóstico psiquiátrico; na verdade, o que a gente tem, na maioria das vezes, é o subreconhecimento e o subtratamento. Eventualmente vemos uma escola em que, em determinada sala de aula, há quatro ou cinco crianças diagnosticadas com TDAH, o que de fato está acima do que se espera na prevalência populacional. Acontece que isso normalmente se dá em situações focais em escolas privadas que atendem a uma população de classe socioeconômica mais favorecida. Questões pontuais em escolas privadas não correspondem à realidade da população brasileira.
Não haveria hoje uma falsificação e até romantização dos diagnósticos de TDAH nas redes sociais? Pessoas não estariam afirmando ter o transtorno e até usando o diagnóstico como justificativa para certas ações?
O diagnóstico de TDAH nos permite entender o que está se passando com a pessoa, mas isso não vai justificar determinadas situações. Vamos ter de trabalhar para melhorar as dificuldades do indivíduo e também acomodar algumas coisas na sociedade para poder acolhê-lo. O problema das redes sociais é a questão da desinformação e, como você afirmou, a mitificação de algumas situações de saúde mental. O TDAH está associado à maior repetência, a maiores problemas de continuidade acadêmica, a dificuldades de colocação profissional, acidentes domésticos, acidentes automobilísticos em adultos, doenças sexualmente transmissíveis em adolescentes pela impulsividade e a desatenção, mais gravidez na adolescência. O quadro não é tão bacana assim como, muitas vezes, é colocado dentro das mídias sociais.
Na área de transtornos mentais, não há nenhum teste biológico que tenha valor preditivo positivo ou negativo para confirmar ou excluir diagnóstico. Muito menos checklists rápidos como os que vemos na internet.
Hoje também vemos “testes” de diagnóstico na internet. Há uma banalização?
Se o conceito é dimensional, para chegar ao diagnóstico preciso ter um profissional que esteja habilitado em conhecer o desenvolvimento normal e possa fazer as diferenciações com a psicopatologia. Nessa área de transtornos mentais, não há nenhum teste biológico que tenha valor preditivo positivo ou negativo para confirmar ou excluir diagnóstico. Muito menos checklists rápidos como os que vemos na internet. É preciso ter um cuidado muito grande, porque cada vez mais esse é um fenômeno que a gente tem assistido no Brasil. Nos Estados Unidos isso tem sido bastante discutido. É um problema real e extremamente importante, devemos evitar a banalização das situações dos transtornos mentais.
O que isso diz sobre o momento atual?
A forma como a gente vai absorver o conhecimento e o conteúdo tem de passar por uma análise crítica. Uma vez, vários anos atrás, a gente chamou um grande professor da área de saúde mental e epidemiologia, Dan Offord, do Canadá, e, em uma discussão, ele foi questionado: “Olhando para o Brasil, qual seria a área prioritária de pesquisa em saúde mental?”. Ele respondeu: o prioritário é aprender a ler criticamente os artigos científicos. Como é que a gente os traduz para a realidade de hoje? Cada vez mais a gente é assolado por uma quantidade de informação massificada, disponibilizada sem nenhuma crítica. Precisamos desenvolver a capacidade de análise crítica de tudo isso. A junção de pesquisa e clínica costuma ajudar muito nisso.
O que o senhor percebe em relação à concentração das crianças hoje?
As crianças estão colocadas em um mundo em que os estímulos são cada vez maiores. Muitas vezes, são estímulos que reforçam um comportamento, são situações que aumentam a disponibilidade de dopamina no cérebro. Essas situações competem, muitas vezes, com a necessidade de atenção a outras situações menos motivadoras. Por isso é importante ter uma estrutura familiar e de ensino que ajude a criança a absorver melhor esses estímulos. Ter uma vida saudável, para a criança e o adolescente, é ter a oportunidade de interação real e presencial com outros jovens, ter sono, ter exercício físico e tempo de tela adequados. É que isso exige um trabalho de supervisão, de parentalidade. Ao natural, sem essa supervisão, isso não vai acontecer. É preciso que exista esse trabalho, em casa e também dentro das escolas.
A questão das telas é controversa. É uma mitificação que se tem. Quando você olha os estudos científicos, não se vê prejuízo trazido por algum eventual excesso de uso de telas – e eu não estou falando em relação à saúde física, mas em termos de bem-estar e saúde emocional. A supervisão maior deve ser quanto ao conteúdo.
É preciso ter também estímulos que não sejam, por exemplo, da tecnologia e das telas?
A questão das telas é controversa. É outra mitificação que se tem. Quando você olha os estudos científicos, claramente não se vê um prejuízo trazido por algum eventual excesso de uso de telas – e eu não estou falando em relação à saúde física, mas em termos de bem-estar e saúde emocional. A gente não sabe o tamanho de efeito, e as pessoas normalmente propagam as questões negativas. Muitos estudos têm mostrado, inclusive um grande estudo americano que acompanhou 10 mil crianças, que as que jogavam videogame no período de dois anos tinham aumento de indicadores cognitivos, se comparado às que não jogavam. Então, a gente tem revisitado essa demonização das telas. Temos de ter bom senso em termos da quantidade de tempo nas telas, é claro, mas principalmente devemos estar atentos ao conteúdo ao qual as crianças estão tendo acesso. A supervisão parental deve ser maior quanto ao conteúdo, em vez de haver preocupação excessiva apenas com o tempo de tela.
Alguns especialistas argumentam hoje que há uma hipermedicação de crianças e adolescentes, sobretudo em relação à saúde mental. Qual é a avaliação do senhor sobre isso?
Não há nenhum dado sobre isso. Certamente há infecções que são virais e que não têm indicação de uso de antibiótico sendo tratadas com antibiótico na população em geral. Então, eu não posso dizer que não existe o tratamento inadequado. Certamente deve existir também em se tratando de saúde mental. Mas veja: um estudo avaliou o acesso ao tratamento e mostrou que, no Brasil, apenas um em cada cinco jovens com transtornos mentais consegue ter acesso ao tratamento. Então, claramente, em termos de saúde pública e do ponto de vista populacional, o nosso problema é o acesso ao tratamento. Na área do TDAH, houve uma grande revisão sistemática e de meta-análise ao redor do mundo, incluindo o Brasil, que mostrou claramente que a gente tem um problema de subtratamento – embora possam existir situações de hipermedicação para TDAH. Mundialmente, o subtratamento é um problema muito maior do que o supertratamento. A gente tem de colocar isso na perspectiva correta.
O senhor trabalhou com pesquisas envolvendo questões genéticas. Elas interferem no desenvolvimento de TDAH? E quanto ao ambiente?
A compreensão moderna das causas dos transtornos mentais é de que são uma interação entre as nossas vulnerabilidades biológicas, que são determinadas em grande parte geneticamente, com as demandas ambientais. Então, se tenho alta vulnerabilidade biológica ao TDAH, vou depender menos de demandas ambientais para ter a expressão fenotípica de desatenção, hiperatividade e impulsividade. Quando a minha vulnerabilidade biológica é menor, vou depender mais de gatilhos ambientais. TDAH é um dos transtornos mentais com maior herdabilidade, ou seja, com maior participação da genética no desenvolvimento da condção. Em termos de transtornos mentais, só o transtorno do espectro autista tem uma herdabilidade maior. Então, não é incomum nós começarmos aqui no Programa de TDAH uma entrevista com os pais e com a criança, e o pai ou a mãe saltarem e dizerem: “Mas isso que você está mencionando: eu era igual quando criança”. Mas é óbvio que, dependendo da demanda ser maior ou menor, do ambiente, enfim, essa expressão será maior ou menor. É a mesma coisa em qualquer outra área: se eu tenho uma tendência genética à asma ou à gastrite, se eu estou num momento de estresse, o gatilho vai fazer com que eu expresse muito mais a asma ou a gastrite. Nesse sentido, as questões de saúde mental não são muito diferentes das questões clínicas.
Em algumas entrevistas, o senhor já afirmou que adultos podem desenvolver TDAH. Como isso é possível? O que leva a desencadear?
Boa parte dos casos de TDAH estão presentes desde a infância. O adulto apresenta um quadro que já estava ali desde antes. O que as nossas pesquisas, junto às de outros grupos do mundo, conseguiram mostrar é que, eventualmente, nessas condições, em que a pessoa tenha uma vulnerabilidade genética não tão alta e seja criada em uma família em que os pais fazem todo o gerenciamento das atividades, alcançando uma capacidade cognitiva maior, as demandas ambientais acabam sendo controladas e não são suficientes para o desenvolvimento do TDAH. Agora, quando a pessoa assume as exigências da vida adulta precocemente, tendo de fazer o gerenciamento e as funções executivas maiores, os sintomas de TDAH explodem. Nesse sentido nem sempre os quadros estão presentes desde a infância. Eles podem eclodir mais adiante.
Como é estar entre os pesquisadores mais citados do mundo, representando a medicina gaúcha, pelo quarto ano consecutivo?
É um reconhecimento de que é possível fazer pesquisa em países como o Brasil, países que ainda não têm um investimento maciço em educação, inovação e pesquisa. Acho que é um incentivo também, uma demonstração de que é possível fazer pesquisa em áreas que antes não eram tão valorizadas, como a saúde mental de crianças e adolescentes. É um reflexo dessa possibilidade e, também, a consequência de um trabalho em grupo. A pesquisa, hoje em dia, não é feita individualmente. Você precisa de um grupo sólido e consistente de pesquisadores e, principalmente, de interconexão com outros grupos de pesquisa. Nós temos uma interconexão muito forte com o grupo de genética da UFRGS, com o grupo da UFPel coordenado pelo professor Cesar Victora (que também está na lista dos mais citados do mundo), que é um ícone para todos nós em termos de pesquisa na área de saúde, e diversas conexões com grupos de outros países, também.
Em quais pesquisas o senhor trabalha atualmente?
A gente segue com um portfólio enorme, desde pesquisas que buscam, em rede internacional, entender melhor quais são as bases genéticas ou alterações genéticas que determinam uma suscetibilidade maior a desatenção, hiperatividade e impulsividade. A gente segue trabalhando em pesquisas que tentam refinar os critérios diagnósticos de TDAH em populações específicas, como em meninas, em adultos, se a gente precisa modificar questões dos critérios diagnósticos. Em intervenções não farmacológicas, como neuromodulação, agora com associação de exercício físico e gamificação, para jovens com TDAH. Continuamos avaliando também respostas a tratamento farmacológico no TDAH, como a gente pode melhorar a resposta ou a tolerabilidade. Pesquisas em questões de nutrição e TDAH, questões de inovação, como apps, porque um dos grandes problemas em doenças crônicas é a aderência ao tratamento. Agora, imagine um transtorno crônico como TDAH, cujos sintomas básicos são desatenção, impulsividade e novelty seeking (busca por sensações novas): a aderência é um problema maior ainda. A gente também tem pesquisas buscando saber se, com soluções digitais, consegue melhorar a persistência dos indivíduos para o tratamento.
Hoje, a expectativa é que as questões em transtorno de déficit de atenção mais promissoras venham de novas intervenções não farmacológicas do que propriamente ajustes ou novidades em termos de medicamentos.
Os tratamentos hoje estão mais promissores?
Os tratamentos para TDAH, do ponto de vista farmacológico, já têm um nível de eficácia alto, então a gente não enxerga no horizonte, a curto prazo, grandes modificações em termos de medicamentos. O que a gente busca eventualmente, com tratamentos novos, é acolher a situação daqueles indivíduos que não se adaptam e que, em função de comorbidades ou de situações de efeitos colaterais, precisam de outras intervenções. A cobertura maior dos tratamentos ao longo do dia também é algo que a gente tem desenvolvido no campo farmacológico. No campo não farmacológico, o que tem se mostrado bastante promissor nos últimos três anos é a questão do exercício físico. De intensidade moderada, três a quatro vezes por semana, o exercício tem mostrado resultados importantes na melhora atencional e de função executiva. Mas a grande dificuldade é como fazer as pessoas aderirem ao exercício físico. Por isso essa nossa ideia de investir em gamificação. Então, hoje, a expectativa é que as questões em transtorno de déficit de atenção mais promissoras venham de novas intervenções não farmacológicas do que propriamente ajustes ou novidades em termos de medicamentos.