Se a pluralidade de ideias é necessária em uma democracia, é inegável que o Brasil, há algum tempo, cruzou o limite dos dissensos saudáveis e permitiu um cenário em que a intolerância ao contraditório é a regra. Lançado em 2023, o livro Biografia do Abismo – Como a Polarização Divide Famílias, Desafia Empresas e Compromete o Futuro do Brasil analisa as repercussões desse fenômeno, que transbordam para todas as instâncias da sociedade, dos ambientes familiares às salas de aula. O cientista político Felipe Nunes que divide a autoria com Thomas Traumann, fala com propriedade. À frente da Quaest, coordena pesquisas eleitorais e estudos sobre temas como fake news há vários anos. Nesta entrevista, Nunes, que tem 40 anos, sustenta que a calcificação das posições é alimentada pelos atuais protagonistas da política nacional e debilita a democracia, à medida que inviabiliza o diálogo entre quem pensa diferente e estimula a violência. Sobre o futuro, entende que há saída para a radicalização, mas alerta: levará tempo e não será fácil.
O livro afirma, em mais de um momento, que “a eleição de 2022 não terminou”. A cerimônia em alusão ao 8 de janeiro, quando os atos antidemocráticos completaram um ano, propunha-se à pacificação, mas a oposição não compareceu e o presidente fez um discurso, em parte, de cunho eleitoreiro. As forças políticas não estão comprometidas em atenuar a polarização?
Não estão, porque interessa a elas que continue assim. Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, a manutenção da polarização fortifica suas posições como protagonistas do processo eleitoral. Essas duas lideranças importantes do país procuram manter o medo, sentimento que, conforme mostramos no livro, foi fundamental no processo eleitoral. O medo da volta do PT ao poder e o medo da continuidade do Bolsonaro no poder foram elementos importantes e que, na minha opinião, continuam sendo alimentados. Ou seja, não estamos falando de um processo político positivo, mas de um processo que é construído sobretudo a partir das rejeições, de sentimentos de afetividades negativas.
Nesse sentido, é possível mensurar o quanto do fenômeno da polarização é orgânico, resultado de um processo natural de descrença nas instituições e de criminalização da política que acentuou o radicalismo, e o quanto é estratégico, arquitetado?
É 100% arquitetado. A partir de 2018, estabeleceu-se que a polarização no Brasil não seria mais política – aquela que conhecíamos entre PT e PSDB. Passou a ser uma polarização afetiva, que se dá no campo da descrença total nas instituições, de um certo niilismo, da alimentação da desconfiança nas relações interpessoais, o que transforma o meu adversário político em inimigo. Isso foi alimentado o tempo todo no governo Bolsonaro, e o PT fez questão de manter, porque a ele também interessa. O que temos observado é que o discurso que foi apresentado por Bolsonaro nos últimos cinco anos foi um discurso pensado para mobilizar a antipolítica e a descrença institucional, o que, inclusive, levou uma parte do eleitorado bolsonarista a promover os atos de 8 de janeiro. As pesquisas de opinião mostram isso de maneira muito clara: um pedaço do eleitorado bolsonarista queria um golpe de Estado. A grande maioria, não, mas uma parte, sim. Esse processo orquestrado para destruir as instituições, questionar a confiança no Supremo, no Congresso, nos partidos, na política como um todo é, sim, parte de uma estratégia, e que não existe só no Brasil. Temos visto isso em vários países da Europa, nos Estados Unidos, agora na Argentina. É mais do que só um movimento de massa fruto do seu momento. É verdade que as pessoas estão mais insatisfeitas com a democracia, que em certa medida não tem conseguido apresentar tantas soluções quanto prometido, mas também é um processo estratégico das elites políticas, que têm interesses eleitorais em torno disso. E isso está mensurado não só no nosso livro, mas em outras obras que discutem o assunto.
Quando o 8 de Janeiro aconteceu, acreditava-se que, pela gravidade dos fatos, o episódio poderia delimitar o início de um recuo no radicalismo. Passado mais de um ano, isso não se confirmou?
Essa é a pergunta que vai definir o futuro do Brasil nos próximos anos. A mais recente pesquisa feita pela Quaest sobre esse assunto mostra que a grande maioria dos brasileiros continua rejeitando o que aconteceu naquele dia. Trata-se de um evento de uma minoria, apoiado por pouquíssima gente, mas que existe, tem poder de financiamento e mobilização. Se quisermos restabelecer a normalidade democrática, é mandatório que aqueles atos sejam tratados como um problema de Estado, e não como um problema político. Qualquer aceno do atual governo de classificar o que aconteceu como um ato bolsonarista é uma generalização ruim para a democracia. Observei que, nos discursos que foram feitos na cerimônia de um ano dos atos, houve um cuidado de classificar como algo feito por radicais, extremistas, que é como devem ser classificados, na minha avaliação. O que a gente percebe hoje é que, em relação ao governo, há divisão e calcificação. Em relação aos atos de 8 de janeiro, não. O que vemos é congregação de uma maioria grande rechaçando o que aconteceu.
A partir de 2018, estabeleceu-se que a polarização no Brasil não seria mais política – aquela que conhecíamos entre PT e PSDB. Passou a ser uma polarização afetiva, que se dá no campo da descrença total nas instituições, de um certo niilismo, da alimentação da desconfiança nas relações interpessoais, o que transforma o meu adversário político em inimigo. Isso foi alimentado o tempo todo no governo Bolsonaro, e o PT fez questão de manter, porque a ele também interessa.
O livro afirma que a polarização radical não vai acabar no curto prazo. Mas como suportar um ambiente tão pesado, em que muitas vezes um simples almoço de família requer que assuntos políticos fiquem fora da mesa?
Os brasileiros estão lidando com a calcificação da polarização política de duas maneiras. Uma é a que você descreveu: “hoje não se fala de política na mesa”. A outra é só almoçar com quem pensa igual. Essas duas soluções são sintomas de uma democracia fragilizada, porque é exatamente a pluralidade de ideias, a divergência, o debate sobre qual a melhor maneira de se chegar a um resultado político que fortalecem as democracias. Uma democracia pré-censurada só alimenta os preconceitos. Eu diria que, em 2022, foi impossível tolerar as diferenças, que estavam gritantes. Ao longo de 2023, criamos alternativas para lidar com essa calcificação: ou não dialogar ou só dialogar com quem pensa igual. Daqui para a frente, vamos ter de aprender a abrir espaço para o diálogo democrático, que é saudável e necessário. O desafio de 2024 da democracia brasileira é exatamente encontrar esse equilíbrio, ou seja, ter uma posição, mas tolerar quem pensa diferente, desde que haja um limite. E os atos de 8 de janeiro são o limite. Não pode haver defesa de quebra institucional.
Qual é exatamente o limite da polarização saudável e em que momento o Brasil cruzou essa linha?
O limite da polarização saudável é o limite da divergência de ideias. Até 2014, havia um debate sobre os rumos que o Brasil devia tomar, mas dentro do processo democrático. Ninguém defendia ruptura institucional. É a partir do momento em que ideias golpistas passam a aparecer no cenário político que começamos a ver o limite sendo ultrapassado. E isso foi construído, na minha visão, ao longo de um processo eleitoral que começou em 2018, em função de toda a descrença na política e nos políticos – e havia uma série de razões para isso, em função dos grandes escândalos de corrupção. Isso foi intensificado ao longo de 2019, 2020 e 2021, e chegou em 2022 ao ápice. É quando passamos a olhar para o nosso adversário político como um inimigo, alguém que eu preciso aniquilar, que é tão intolerável que não pode existir. Foi nesse momento que a sociedade ultrapassou o limite, em um cenário em que a violência, o autoritarismo e a intolerância passaram a ser regra. Agora temos de partir para a reconstrução de uma sociedade que divirja, que pense diferente, em que a direita e a esquerda possam coexistir, com ideias mais conservadoras e mais progressistas, ideias mais estatistas e mais liberais, mas sem desejar aniquilar o outro, sem quebrar a regra do jogo. É esse limite que temos de lembrar todos os dias.
Em 2022, foi impossível tolerar as diferenças, que estavam gritantes. Ao longo de 2023, criamos alternativas para lidar com essa calcificação: ou não dialogar ou só dialogar com quem pensa igual. Daqui para a frente, vamos ter de aprender a abrir espaço para o diálogo democrático, que é saudável e necessário. O desafio de 2024 da democracia brasileira é encontrar esse equilíbrio.
Em relação às redes sociais, o senhor concorda que há permissividade das plataformas e que isso contribui para o radicalismo?
Não tenho a menor dúvida que o grande mal do século 21 é a desinformação. Há um descrédito total do trabalho jornalístico e de pesquisas, há um negacionismo em relação à ciência. A nova era, que é da desinformação, unifica tudo isso. Acho que as sociedades do mundo inteiro vão ter de discutir soluções, mas não censurar o direito que as pessoas precisam ter de opinar. A última coisa que queremos é censura prévia de qualquer ato, a não ser aquele ato que produz intolerância, violência, preconceitos, e que estimula qualquer tipo de valor ou moral que seja prejudicial à sociedade. Esse é o caminho para pensarmos qual é o limite. Karl Popper (filósofo britânico), que citamos no livro, diz com muita clareza algo com o que eu concordo: “Tolerar os intolerantes é acabar com a tolerância”. Acho que aí está o limite. A partir do momento em que o meu veículo de comunicação pessoal é utilizado para atacar, destruir, gerar violência, terrorismo, ações negativas contra qualquer grupo, esse é o limite. É só uma pena que esse tema também esteja se tornando politizado. Isso é péssimo, pois deveria ser um dos lugares em que o Brasil deveria se unir, pois é algo para o nosso bem.
O livro afirma que a eleição de 2022 foi uma “guerra de rejeições”. Se os candidatos polarizantes eram tão rejeitados, por que nenhuma candidatura alternativa decolou?
Porque o eleitor temia que, se migrasse para uma terceira via, o candidato o qual odiava ganhasse a eleição. A partir do momento em que a rejeição que eu tenho ao Bolsonaro ou ao Lula é muito grande, mas reconheço que eles são fortes, qualquer movimento na direção de um candidato de centro significa aumentar as chances do cara que eu odeio vencer. Então é melhor ficar no meu canto, porque esse candidato, mesmo que não seja o mais amado, pelo menos é mais competitivo para tentar derrotar quem eu odeio. Se você olhar as estatísticas que estão no livro, a maioria dos eleitores que votaram no Bolsonaro afirma que votou nele para evitar uma vitória do Lula. No caso do Lula, é 50%-50%: metade dos eleitores votaram nele para evitar a reeleição de Bolsonaro.
Bolsonaro está inelegível, e muitos acreditam que Lula não concorrerá em 2026. O livro, porém, defende que a ausência deles nas urnas não devolverá o país à normalidade política. Por quê?
Lula e Bolsonaro são apenas agentes de uma visão de mundo que está impregnada na sociedade. Eles são meros instrumentos dessa visão de mundo. Quando dizemos no livro que os conservadores cristãos se uniram aos grupos do agro e dos empreendedores, e que os progressistas se uniram aos liberais sociais e às classes mais baixas, não significa que eles se juntaram em torno do que são Lula e Bolsonaro, mas do que eles representam. Outro nome que disputar a eleição nessa mesma toada terá, provavelmente, apoio desses mesmos setores, desde que seja para derrotar o outro. Por isso que chamamos de calcificação: os dois polos estão enrijecidos.
Mesmo se tivermos candidatos de perfil mais moderado e conciliador, como Fernando Haddad e Tarcísio de Freitas, que são nomes cotados hoje?
De fato, hoje eles têm essa postura. Mas, no processo eleitoral, justamente para não abrir espaço para que surja outro candidato bolsonarista, Tarcísio terá de se comportar como um bolsonarista para garantir o apoio desse eleitorado, que não é desprezível na sociedade. Do contrário, corre o risco de ficar de fora do segundo turno. O mesmo no lado da esquerda: o candidato que abrir mão do apoio do grupo que tem uma visão mais extrema na esquerda também corre o risco de não ir para o segundo turno. Isso vai acontecer nas eleições municipais deste ano. Então, é menos uma questão de perfil de candidatos e mais de como a eleição está organizada. E a eleição está organizada no Brasil para contrapor duas visões de mundo. Os candidatos mais competitivos em cada lado vão ter que se posicionar em relação a essas questões.
O livro discute possíveis saídas para esse cenário. Esse processo precisa começar pela população, pelos grupos políticos ou pelas instituições?
O livro é uma chamada de atenção para todo mundo. Nosso prognóstico é que vai ser difícil lidar com tudo isso. O que sugerimos, primeiro, é que vai levar tempo. Todo mundo vai ter que baixar as armas, e isso só o tempo produz. E o tempo deve promover uma mudança geracional no Brasil que vai impactar a calcificação. Estamos em um momento histórico em que os dois lados têm o mesmo tamanho. Com o passar dos anos e da mudança geracional, isso deve mudar. É só olhar para os dados demográficos: o eleitor mais velho votou mais no Bolsonaro, o eleitor mais jovem votou mais no Lula. No nível das elites políticas, o que pode ser feito agora é um pacto de não agressão. Isso é uma responsabilidade dos políticos. No nível das pessoas, precisamos ampliar a nossa capacidade de conviver com quem é diferente, porque o pluralismo de ideias é fundamental. O lugar onde achamos que isso vai acontecer de maneira mais fácil é o ambiente familiar. Apostamos que as famílias são um ótimo lugar para começar essas conversas, já que, geralmente, o afeto entre as pessoas é determinante nesse contexto. Vai dar trabalho, mas achamos que tem saída. Todo mundo está vendo o prejuízo de ter uma democracia calcificada. O abismo produzido não é bom para os negócios, não é bom para as famílias. Tem consequências emocionais e econômicas, e isso é um caminho que gera bons incentivos para buscar o fim desse processo.
Precisamos ampliar nossa capacidade de conviver com quem é diferente, porque o pluralismo é fundamental. O lugar onde achamos que isso vai acontecer de maneira mais fácil é o ambiente familiar, já que o afeto entre as pessoas é determinante nesse contexto.
E isso passa por, em algum momento, eleger candidatos mais moderados ou centristas, ou não necessariamente?
O mais importante é que a agenda política do Brasil se transforme em uma agenda moderada. Quando falo em moderação, não quer dizer que não esteja defendendo que grupos minoritários ou de preferências intensas não tenham voz no processo democrático, pelo contrário. O que não podemos é que, quando um interesse é derrotado nas urnas ou no processo legislativo, isso crie espaço para a defesa de qualquer tipo de ruptura institucional. O mais importante da democracia não é vencer, é saber perder.
Para além dos efeitos que são descritos no livro, o que é o pior de uma sociedade calcificada?
O pior, sem dúvida, é o grau de violência a que chegamos quando essa intolerância tomou conta de parcela importante da sociedade. O que sempre se buscou na história do mundo foi acabar com o estado de natureza, aquele em que a gente mata uns aos outros para tentar sobreviver. É para isso que criamos leis, Estado, regras. Quando regressamos ao estado pré-Hobbesiano, em que eu mato porque você vota em outro candidato, aí perdemos até a ideia do que é uma civilização, voltamos para a barbárie. Isso não pode ser tolerado em uma sociedade moderna, sob nenhuma hipótese. É muito grave onde esse tipo de processo pode nos levar, e é por isso que temos que estar atentos o tempo todo.