Um dos principais pensadores da comunicação no Brasil, Eugênio Bucci recém-lançou um novo livro, Incerteza, um Ensaio – Como Pensamos a Ideia que nos Desorienta (e Orienta o Mundo Digital), no qual faz uma profunda análise sobre o mecanismo de funcionamento das plataformas digitais, a inteligência artificial e a tecnologia nos tempos atuais. Docente na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), ex-presidente da Radiobras e especialista em ética no jornalismo, Bucci, 64 anos, dedica-se na obra a recuperar a Teoria Matemática das Comunicações para explicar como algo que, filosoficamente, é inerente ao ser humano, a incerteza sobre o futuro, tornou-se matéria-prima explorada pelos algoritmos, que sabem muito mais sobre nós do que nos mesmos. Nesta entrevista, ele analisa o papel das big techs no capitalismo, discute pontos positivos e fragilidades do projeto de lei que pretende regulamentar as redes sociais no país e lança reflexões sobre o futuro do jornalismo.
Em seu novo livro, o senhor parte de um conceito angustiante, a incerteza, para explicar o mundo digital. Como chegou a essa relação?
Teve um quê de “eureka”, sem dúvida. Embora esse tema faça parte da minha pauta frequente quando pesquiso o imaginário, o sujeito, o espetáculo, a comunicação. Essa ideia tomou forma quando o professor Térsio Sampaio Ferraz Jr. me convidou para fazer uma pequena fala em um seminário. O tema geral era incerteza. Para mim, ele encomendou uma reflexão sobre a incerteza no mundo digital. Comecei a pensar e percebi que justamente a ideia que nos desorienta, que é a incerteza, é a que dá o parâmetro das redes, da internet, dos algoritmos. Ou seja, a sensação de incerteza que às vezes nos confunde é a matéria-prima para o mundo digital. O sujeito humano, diante de uma incerteza, tem a necessidade racional de parar para pensar. Ou, em outra perspectiva, quer apostar, correr risco, pagar para ver. Mas o mundo digital se estruturou a partir do cálculo das probabilidades da forma que a matemática e a engenharia encontraram para calcular o incerto. E foi isso que começou a viabilizar a construção dessas máquinas.
Nessa era de incerteza que vivemos e na qual muitas vezes conceitos são deturpados para fins políticos – como “nazismo de esquerda” –, qual a importância de se voltar às bases teóricas?
Para mim, foi necessário. Quando comecei a pensar, quis entender a gênese do pensamento matemático sobre a incerteza. Passei pela termodinâmica, pela noção de entropia. Voltei ao princípio da incerteza do Eisenberg. Eu queria entender como isso avançou, ganhou consistência teórica e, enfim, viabilizou a cibernética. Senti necessidade de fazer uma recapitulação, como uma árvore genealógica de uma ideia. E me parece fascinante: aquilo que, do ponto de vista existencial, nos traz exasperação, no mundo digital traz solução.
Vladimir Safatle, na apresentação do seu livro, diz que o capital parece saber sobre nós mais do que nós mesmos. E, como operários digitais, trabalhamos sem perceber. Isso lembra aquela ideia segundo a qual, se o produto é de graça, você é o produto… Hoje, temos maior consciência disso? Não somos mais tão ingênuos em relação à tecnologia?
Existe não uma ingenuidade, porque ela é um atributo que carrega um peso moral, mas uma ignorância imposta. Estamos submersos em um mar que fabrica desinformação e ignorância. O mundo digital, especialmente o algoritmo, para nós, é uma parede opaca. Nós, usuários, não sabemos o que se passa lá dentro. Existe então essa assimetria entre o que se sabe dentro de uma big tech sobre os consumidores e o que os consumidores conseguem saber que se passa dentro das big techs. Esse poder tecnológico está protegido por uma opacidade imposta. Ou seja, existe uma ignorância sobre ele e uma desinformação sobre ele. Logo, não se trata de uma ingenuidade das pessoas, mas de um bloqueio de acesso à informação. Não conhecemos como funciona exatamente o algoritmo. Isso vem sendo debatido no mundo democrático aos poucos. Depois que o livro chegou da gráfica, a Meta (dona do Facebook) foi multada em 1,2 bilhão de euros porque estava fazendo uma transfusão de dados pessoais de seus usuários na Europa para os bancos de dados da empresa nos EUA. Ora, isso não era sabido. Não sabemos o que se passa dentro desses bunkers, que são as big techs, assim como não sabemos como funcionam os algoritmos e o que é feito dos dados extraídos de nós, quanto dinheiro geram, para quem são vendidos, que tipo de estratégias políticas e comerciais vão abastecer. Como seres humanos, somos vítimas dessa incerteza. Ao mesmo tempo, as máquinas e os controladores delas, que são as big techs, que é o capital, quase não têm incertezas sobre nós. É possível que esses bancos de dados saibam exatamente com que idade eu vá desenvolver uma enfermidade qualquer. E eu não sei. As big techs, ou seja, o capital, sabe mais de nós do que sabemos dele. A tecnologia e o capital estão no mesmo terreno.
O senhor diz que nossos smartphones sabem mais sobre nós do que nós sobre eles. É possível virar o jogo?
É possível, mas improvável. Essa é uma resposta que dou com uma ponta de ironia, mas, ao mesmo tempo, há alguma esperança. No meu livro, há uma ilustração: uma mão humana segurando o fio de uma pipa, que voa no céu. E vem a legenda: “Fio de esperança”. Existe esperança. Essa possibilidade nos remete ao embate entre a democracia e o poder incomensurável das big techs. Se a democracia conseguir regular a exploração dessas tecnologias, haverá esperança. Se a democracia for capaz de ter marcos legais para prevenir e minimizar os males da desinformação, a gente avança. Se conseguirem regular as pesquisas sobre inteligência artificial, se for possível quebrar a opacidade das big techs, fazer com que os dados que elas extraem sejam conhecidos, fazer com que o modo como elas manuseiam e comercializam esses dados seja do nosso conhecimento, a gente vai avançar. Mas se por outro lado o que hoje é opaco continuar mais opaco e nossa privacidade continuar sem proteção, estaremos em um cenário em que não haverá inversão do jogo. Por isso que digo: consideradas as condições que estão aí, não é o mais provável.
O escritor Yuval Harari liderou um abaixo-assinado transnacional pedindo uma trégua de seis meses nas pesquisas sobre inteligência artificial. O senhor encerra um artigo no jornal o Estado de S. Paulo afirmando: “Olhe com ternura e compaixão para o mundo a sua volta, porque ele vai desaparecer num suspiro”. O senhor é pessimista sobre o futuro em relação à tecnologia?
Tenho um diagnóstico pessimista. Acho que não a tecnologia, mas as relações de propriedade que amordaçam a tecnologia e que a tornaram um privilégio e não um ativo de toda a sociedade trouxeram mais notícias ruins do que boas. Esse meu diagnóstico parece pessimista porque vê mais notícias ruins do que boas no desenvolvimento hiperacelerado dessas tecnologias. Mas a responsabilidade disso não é das tecnologias, ela está nas relações de propriedade e controle que um capital muito concentrado consegue exercer sobre tudo isso. Logo, não sou pessimista sobre a tecnologia, até sou um entusiasta das possibilidades da tecnologia, mas sou pessimista sobre a forma como se dá o controle da tecnologia e a forma como se deu a apropriação do desenvolvimento da tecnologia. São muito poucos esses donos. Eles estão nesses megaconglomerados monopolistas, como Amazon, Meta, Google. Suas pesquisas são desenvolvidas por empresas de muita inovação, como a do atual dono do Twitter, Elon Musk, que tem a Tesla, que investe muito em tecnologia. Esses grupos são donos do destino da tecnologia e do uso da tecnologia pela sociedade. Algo está invertido aí. Se a comunicação entre as pessoas depende dessas tecnologias que são fechadas, opacas, algo vai dar errado. É necessário que a sociedade exerça alguma forma de fiscalização sobre isso. Estamos falando aqui de regulação de mercados. Todos os mercados, nas sociedades contemporâneas, são regidos por algum marco legal. Por que só o mundo da internet poderia existir para além da lei democrática?
É necessário que a sociedade exerça alguma forma de fiscalização (sobre as plataformas digitais). Todos os mercados são regidos por algum marco legal. Por que só o mundo da internet poderia existir para além da lei democrática?
Sobre a regulação das big techs, o modelo mais bem acabado é o da União Europeia, que inspirou o PL 2630, das fake news, em discussão no Brasil. Que avaliação o senhor faz desse processo no Congresso, diante de um lobby tão forte, que inclusive se utilizou de desinformação para entravar a votação na Câmara dos Deputados?
A resistência do Google, sobretudo com esse link para artigos de opinião que questionavam o PL (no dia em que o texto seria apreciado pelo Congresso), me fez pensar sobre a comunicação no Brasil. Os meios de comunicação, nos países democráticos, ficam a cargo de empresas daquele país. Porque, por meio da comunicação social, vamos formando a opinião pública e vão sendo travados os debates que dizem respeito ao presente e ao futuro do país. É pelo debate público que se amadurecem preferências eleitorais, que as pessoas se informam sobre esse ou aquele caminho para questões estratégicas, de diversos setores na economia ou na vida social. Portanto, é natural que as legislações de todas as democracias confiem para as pessoas daquela nacionalidade o controle de empresas que atuam sobre a comunicação social. Você não veria o New York Times organizando um debate entre os candidatos da presidência da França. Qualquer coisa fora disso é uma intromissão indevida, fere a lei dessas democracias e a ética da convivência entre as nações. Uma nação não pode interferir sobre os rumos de outra. O que ocorreu sobre o debate do PL 2630? Esse debate foi influenciado pela ação de empresas estrangeiras no Brasil. Elas opinaram – e no caso do Google opinaram explicitamente – sobre uma decisão que cabe aos brasileiros tomar. Os cidadãos de outra nacionalidade não podem eleger deputados no Brasil e não podem, portanto, tomar parte em uma decisão que diz respeito à soberania do Brasil. Isso marca uma mudança de qualidade na agressividade com que esses conglomerados defendem seus interesses em detrimento de decisões soberanas de uma nação. Eu achei muito sério. Do ponto de vista legal, há margem para que a gente conteste essa conduta do Google. Mas estou tratando do ponto de vista ético: uma empresa de fora do Brasil não deveria se sentir à vontade para tentar influenciar uma decisão soberana desse país. E fica a pergunta: o que vai acontecer agora em uma eleição presidencial no Brasil? O Google vai defender um candidato?
E sobre o PL2630 em si? Um dos pontos mais polêmicos é quem regularia as plataformas.
Não tenho dúvida de que o mercado das plataformas digitais precisa de regulação. Todos os mercados no Brasil são regulados. O mercado de achocolatados é regulado: você não pode ter formação de oligopólio, monopólio, concentração vertical, horizontal. Existe o Cade no Brasil para tomar conta disso. O mercado de internet também precisa ser regulado. A versão final desse projeto é uma versão que poderia ter sido aprovada, mas ainda pedia algumas correções. Lembro, por exemplo, que não existia nesse projeto um ente regulador, isso é importante que seja previsto na lei. Depois do malogro da votação, alguns pensadores, ao lado da OAB, fizeram uma proposta de uma agência reguladora que pode estar incorporada na lei. Um segundo aspecto: tenho a impressão de que, do jeito que está na lei, há um viés de favorecimento aos que exercem mandato parlamentar. Isso é necessário olhar com mais cautela. Há outros aspectos que poderiam estar melhor projetados. Mesmo assim, acho que a gente precisa aprovar para que as imperfeições sejam corrigidas no processo democrático normal.
Do ponto de vista legal, há margem para que a gente conteste a conduta do Google (no debate sobre o PL 2630). Mas estou tratando do ponto de vista ético: uma empresa de fora do Brasil não deveria se sentir à vontade para influenciar uma decisão soberana desse país.
Os veículos de comunicação sempre se arvoraram a ideia de ser a praça pública, onde o debate ocorre. Pensava-se que as redes poderiam ser a nova praça, nova “Ágora”, digamos assim. Mas essa praça digital não é pública: tem dono…
Os meios de comunicação de massa e os mais regionais compunham uma grande arena, que a gente pode chamar da ágora da modernidade. As plataformas deslocaram essa ágora para o chamado ciberespaço. E aí se deu exatamente isso: a praça pública passou a ter um dono. Em texto recente, o dono da Meta, Mark Zuckerberg, comparou o Facebook a uma praça pública. Ele disse que a ideia do Facebook era que fosse uma grande praça, em que as pessoas pudessem se encontrar, falar dos assuntos de que gostam, trocar opiniões, fotografias. Essa metáfora em parte procede, mas, em outra parte, é um absurdo. Sim, as redes sociais que se formam nessas plataformas promovem essa função de praça pública. Pública porque qualquer um pode chegar, o acesso é relativamente aberto, e ali se pode falar de tudo o que interessa àquele público. Mas, ora, se a praça tem um dono, ela não é pública, ela não pertence ao público. O público que se reúne lá tem de se comportar segundo parâmetros que são estabelecidos pelo dono – e não pelo público. As regras de convivência e os protocolos da comunicação deixam claro que isso de ser público é um absurdo. O funcionamento do algoritmo não é público. Então, como aquele espaço pode ser público? Isso é parte do que temos a resolver: tornar públicos esses espaços ocupados pelo público.
Como isso tudo se relaciona com o jornalismo?
Embora eu não fale muito disso no livro, tenho um capítulo que dedico um pouco ao jornalismo, à ciência, para tratar como a dúvida e a incerteza são essenciais para que a ciência progrida. A incerteza é um pouco a matéria-prima do jornalismo. Falo também da natureza da modernidade, que é sempre geradora de novas incertezas. O jornalismo se vê nos nossos dias diante de desafios muito graves: o primeiro é o do modelo de negócio. A imprensa enfrenta uma crise sobre a sustentação da atividade jornalística. Não sabemos bem como essa sustentação pode prosperar. Hoje, estamos tratando com sistemas de doação para financiar projetos jornalísticos. Em muitos sentidos dá certo, mas é claramente insuficiente. Outra tendência é o fortalecimento do vínculo dos veículos com assinantes. Isso tem sinais positivos, o The New York Times é o mais chamativo, mas também é insuficiente. O segundo é o descompasso tecnológico, porque as empresas jornalísticas demoraram a entender o que era a revolução digital, e alguns centros jornalísticos resistiram a isso.
E qual a terceira crise?
O terceiro desafio muito sério é a crise de pensamento. As redações só são organismos vivos quando representam um modo de olhar o mundo. Uma redação não é uma linha de montagem que empacote conteúdos em formatos diferentes. Um jornalista não é um fechador. Um jornalista é um pensador que lida bem com as linguagens. Mas é, antes de tudo, um pensador: alguém que tem um olhar sobre o mundo. Mas ele é um jornalista completo quando ele pertence a um núcleo pensante, ou seja, ele pertence a uma redação. Um bom exemplo é o The Economist, que tem uma autonomia muito forte na redação. The Economist é uma forma de olhar o mundo. Podemos concordar ou não, mas é uma forma de olhar o mundo. É nítido que a vitalidade dessa redação passa pela simbiose entre o pensamento, a apuração e o discurso. Essa crise de pensamento se abateu com extrema violência sobre a imprensa no Brasil e nos EUA, porque as redações perderam muita gente. O espaço para elaboração foi sufocado. Estamos pensando pouco. E, quando a gente pensa pouco, a gente não cumpre uma das funções prioritárias da imprensa, que é dar nome às coisas. Relatar o que acontece, entender o que acontece, e nomear o que acontece. E aí vou na função primordial da imprensa: fiscalizar o poder. A imprensa precisa ter capacidade material de acompanhar os atos do poder, de fiscalizar e reportar o que se passa para a sociedade, que é a fonte de todo poder, para fazer essa crítica, informar e conseguir a outra função da imprensa, que é mediar o debate público. Sem isso, não teremos democracia saudável. A democracia precisa da imprensa. Se não tivermos uma imprensa forte, seremos obrigados a acreditar no que o poder diz que é verdade. Isso é a morte da democracia. A imprensa serve para duvidar do poder, questionar o poder. Onde o poder não encontra quem dele duvide não existe democracia. E aqui falo do poder político, do Estado, mas também do poder econômico e, dentro dele, das big techs, do poder religioso, das igrejas, de organizações sociais, porque algumas são vetores de influência no debate público. O jornalismo existe, e sua justificativa para existir é olhar criticamente para o poder.