Um livro fundamental sobre a presença judaica no Brasil acaba de ser republicado após 56 anos distante dos leitores. Editado pela primeira e única vez em 1967, pela Fulgor, de São Paulo, Filipson — Memórias de uma Menina na Primeira Colônia Judaica no Rio Grande do Sul (1904-1920), de Frida Alexandr (1906-1972), agora retorna pela Chão Editora, especializada em obras que lançam novo olhar para o passado. A edição chega enriquecida com fotos, mapas e um alentado posfácio com 54 páginas de Regina Zilberman, professora de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Frida foi uma mulher judia que jamais publicou outro livro e não seguiu carreira nas letras, dedicando-se à família. Com pendor literário, fruto de seu amor pela leitura, narra memórias suas e outras ouvidas de familiares e vizinhos da colônia judaica de Philippson (a grafia original), onde nasceu, perto de Santa Maria, na região central do Estado. Por meio de 56 crônicas que formam um todo mas podem ser lidas independentemente, vislumbram-se os costumes, a religiosidade, os romances, as disputas, a economia e principalmente as provações vividas por aqueles imigrantes em uma nova realidade que não era nada rósea. Instalada em 1904, essa experiência rural foi o marco inicial da imigração judaica organizada no Rio Grande do Sul — que, portanto, completará 120 anos em 2024.
Filipson é o primeiro livro de autoria feminina sobre esse empreendimento e um dos primeiros em geral. Antes, veio o romance Numa Clara Manhã de Abril (1940), de Marcos Iolovitch, em seu início ambientado na colônia de Quatro Irmãos, o outro polo de chegada dos judeus ao Rio Grande do Sul, perto de Erechim, a partir de 1912. Tanto a empreitada de Philippson quanto a de Quatro Irmãos foi organizada e financiada pela Jewish Colonization Association (ICA), entidade fundada em 1891, em Londres, pelo barão Maurice de Hirsch (1831-1896), com o objetivo de conduzir os judeus perseguidos pelo antissemitismo na Europa Oriental — os massacres conhecidos como pogroms eram comuns no Império Russo — em direção a uma nova vida na América, dotada do simbolismo bíblico de uma Terra Prometida. Philippson foi batizada em homenagem a Franz Philippson (1852-1929), então vice-presidente da ICA. Esse é o contexto por trás do livro.
— Filipson pode não ter um projeto literário, mas tem o melhor que a literatura oferece — afirma Zilberman. — Lembra o tipo de experiência com a memória da obra de Proust. Frida consegue traduzir com a linguagem a recuperação daquele tempo. É como se ela revivesse tudo aquilo enquanto está escrevendo, e o leitor revive com ela.
Ainda que o livro tenha estado fora de catálogo durante mais de cinco décadas e meia, nunca foi completamente esquecido. É uma obra analisada em estudos de referência como Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros (Editora Perspectiva, 1997), de Regina Igel, e A Imigração Judaica no Rio Grande do Sul (Editora Unisinos, 2004), de Ieda Gutfreind. Frida também mereceu um verbete na Shalvi/Hyman Encyclopedia of Jewish Women, uma enciclopédia virtual em inglês sobre mulheres judias notáveis no mundo, ao lado de nomes como Clarice Lispector, sua irmã mais velha e também escritora Elisa Lispector, Olga Benário Prestes e Eva Sopher.
Até agora, os interessados em Filipson precisavam garimpar algum exemplar surrado em sebos, mas o retorno às livrarias em nova e caprichada edição marca um momento de redescoberta da obra. Há um interesse renovado no meio acadêmico no Exterior, e uma tradução integral para o inglês está sendo concluída por Igel, pesquisadora e professora paulista que leciona na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
— Acredito que, uma vez lançado em inglês, será de interesse para estudiosos e público em geral, dada a riqueza de informações realistas contidas no seu raconto — observa Igel. — Está havendo uma abertura, nos Estados Unidos, para livros como este. Estou em contato com duas editoras, uma é universitária, a outra é particular. Não prevejo dificuldade alguma em publicar uma obra tão interessante.
Como sugere a professora, Filipson não é um livro exclusivo para acadêmicos. A certa altura, Frida observa que escreveu com o objetivo de transmitir suas memórias às "novas gerações, mais cultas, mais prósperas, mais felizes", que devem aos antepassados "o progresso alcançado e as possibilidades que ora usufruem". Desde a primeira frase, a obra busca referência na linguagem oral das histórias contadas em comunidade: "Já ouviram falar de Filipson? Um nome esquisito. Nem parece brasileiro".
Erico Verissimo, em carta à autora em 1952, após receber páginas das recordações, se confessa "surpreendido agradavelmente" com a "simplicidade" e a "clareza" da narrativa, que considera "duas qualidades essenciais para o escritor". Então, o autor de O Tempo e o Vento encoraja a nova memorialista: "Conte a sua história, a história de sua gente e da colônia. Tenho a certeza de que há de interessar a todos quantos são capazes de comover-se com o documento humano". O ano da correspondência indica que Frida trabalhava no livro pelo menos 15 anos antes de sua publicação, em 1967, quando completou 61 anos. Durante a escrita, ela já havia se mudado para São Paulo, onde passou a morar com marido e filhos.
Falando de uma comunidade de cerca de 40 famílias vindas da Bessarábia (região hoje dividida entre Moldávia e Ucrânia), a autora registra histórias que podem agradar a um público amplo, como a da saborosa crônica O Templo, sobre a inauguração da sinagoga de Philippson, construída para receber uma Torá (livro sagrado) presenteada pelos judeus da Letônia e trazida com a última leva de imigrantes. A chegada foi em clima de festa, com danças, cânticos, bolo de mel e vinho. No entanto, instaurou-se uma pendenga sobre quem teria a honra de realizar a primeira reza: o shoiched (responsável pelo abatimento de animais para consumo conforme o ritual judaico) ou seu irmão mais culto. Logo se formaram dois grupos, cada um defendendo um irmão. Coube ao administrador da colônia bater o martelo a favor do primeiro. No aguardado dia, uma surpresa: "O shoiched aproximou-se da arca. Abriu-a solenemente e houve um espanto generalizado. A arca estava vazia. A Torá tinha desaparecido". Seguiu-se uma caça ao suposto responsável.
Caldo cultural
Um dos capítulos mais pungentes é Gafanhotos, que narra a aproximação de uma nuvem que parecia anunciar "uma almejada e benfazeja carga-d’água" mas se revelou uma infestação que destruiu as lavouras. "Os bichos, voando, caíam sobre nós, colidiam com nossos olhos, emaranhavam-se no cabelo, quase que entravam pela boca e se espalhavam, nuvem sobre nuvem, devorando tudo", escreve Frida. No livro Los Gauchos Judíos ("Os gauchos judeus", ainda não traduzido para o português), de 1910, o escritor Alberto Gerchunoff narra uma invasão semelhante de gafanhotos em uma colônia judaica da ICA na Argentina, mostrando que infortúnios acompanharam os imigrantes de ambos os países.
De tão marcante, o capítulo Gafanhotos foi reproduzido pelo irmão de Frida, Jacques Schweidson, em seu livro Judeus de Bombachas e Chimarrão (1985). Embora os moradores das colônias judaicas tenham migrado para as cidades em busca de novas oportunidades de vida, aquelas experiências foram férteis em narrativas. Muitos livros de memórias, depoimentos e ficção foram publicados por autores como Eva Nicolaiewsky, Guilherme Soibelmann, Martha Pargendler Faermann e Adão Voloch, para citar apenas alguns. É nesse caldo cultural que surge Moacyr Scliar — o protagonista de O Centauro no Jardim (1980) nasce em uma fazenda em Quatro Irmãos — e, mais tarde, Cíntia Moscovich.
— A literatura brasileira judaica, escrita em português, nasceu no Rio Grande do Sul. O livro inaugural foi Numa Clara Manhã de Abril, de Marcos Iolovitch — observa Igel, para quem não há outro relato sobre as colônias judaicas da ICA na América "no estilo ao mesmo tempo objetivo e pessoal em que foi escrito por Frida Alexandr".
Apesar da falta de uma intenção literária declarada, Filipson continua intrigando pesquisadores do ponto de vista formal. Situado no campo da memória, entre a história e a ficção, pode ser lido como uma coletânea de crônicas (historiadores consultam a obra para estudos sobre imigração), um ciclo de contos ou mesmo um romance. Para Regina Zilberman, "o livro fica diminuído com essas categorias da teoria da literatura":
— Considero um livro em que a memória tem papel importante. Não deixa de ser literatura de testemunho, mas sem o peso de uma experiência traumática. No caso dela, tem nostalgia por um mundo perdido.
A narrativa termina melancolicamente com a venda do terreno da família de Frida. Como um todo, a colônia durou oficialmente até 1926, quando a ICA transferiu as propriedades para os moradores restantes. Mas para muitos leitores essa história está apenas começando. A autora provavelmente ficaria feliz que, com a redescoberta do livro, cada vez mais pessoas ouvirão falar de Philippson.
Filipson — Memórias de uma Menina na Primeira Colônia Judaica no Rio Grande do Sul (1904-1920)
De Frida Alexandr
Chão Editora, 360 páginas, R$ 82 em chaoeditora.com.br.
Evento de lançamento no dia 25, às 19h, com Regina Zilberman e Roberta Alexandr Sundfeld, mediação de Fábio Prikladnicki, na Federação Israelita do RS (Rua João Telles, 329), em Porto Alegre. Entrada franca