Livro de memórias que conta histórias da primeira colônia judaica no Rio Grande do Sul, Filipson — Memórias de uma Menina na Primeira Colônia Judaica no Rio Grande do Sul (1904-1920), de Frida Alexandr, ganhou nova edição pela Chão Editora, após 56 anos distante dos leitores (leia reportagem aqui).
Neste momento de redescoberta, a obra também está sendo traduzida para o inglês para publicação nos Estados Unidos. O trabalho é realizado por Regina Igel, brasileira que leciona na Universidade de Maryland. Neste entrevista, concedida por e-mail, a pesquisadora fala sobre o livro e o trabalho de tradução.
Qual é a importância do livro de memórias Filipson, de Frida Alexandr? Como esta obra se diferencia de outras sobre a imigração judaica no Rio Grande do Sul?
A meu ver, há dois grandes méritos ligados ao livro Filipson, de Frida Alexandr: é o primeiro e único livro escrito por uma mulher, alfabetizada e criada numa fazenda da Jewish Colonisation Association (ICA) até a idade adulta. Ela descreve realisticamente as terras e seus cultivadores judeus, no sul do Brasil. Os capítulos são curtos, claros e simples. Ela os compôs como quem não buscava glórias literárias, mas sim com a intenção de descrever, desde uma perspectiva panorâmica até pormenores destacáveis, como viviam os imigrantes judeus europeus transformados em lavradores e vaqueiros.
O segundo mérito baseia-se no fato de Frida Alexandr rever e respeitar, com o olhar de mulher adulta, o que ela, como criança e adolescente, observou na sua vivência com a família e os demais moradores de Filipson (o nome da fazenda em que seus pais tinham um lote), que trabalhavam arduamente no trato com o solo, nas aberturas pelos matagais, na convivência nem sempre pacífica com os compatriotas, nos transtornos com a vizinhança indígena, além de serem surpreendidos com ataques de animais e insetos e enfrentarem doenças desconhecidas por eles.
Esses dois méritos — pioneirismo e respeitável olhar no "flashback" —, entre outros que poderia citar, fazem este livro ser único, ímpar entre os que se referem às comunidades das terras da JCA no Brasil. Tais fazendas existiram no Uruguai, na Argentina e nos Estados Unidos, mas não há relato nenhum sobre essas, no estilo ao mesmo tempo objetivo e pessoal, em que foi escrito por Frida Alexandr.
As experiências rurais judaicas nas colônias de Philippson e Quatro Irmãos geraram um número muito grande de livros de memórias, depoimentos e ficção, como você observa no seu livro Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros (Editora Perspectiva, 1997). Você também escreve que o Rio Grande do Sul foi uma espécie de berço da literatura judaica brasileira. Por que essas experiências foram tão férteis em narrativas? Isso pode ajudar a explicar o surgimento de Moacyr Scliar e, mais tarde, Cíntia Moscovich?
Sim, coloquei no meu livro (e em artigos subsequentes) que a literatura brasileira judaica, escrita em português, nasceu no Rio Grande do Sul. O livro inaugural foi Numa Clara Manhã de Abril, de Marcos Iolovitch. É obra de uma pessoa com sensibilidade, informando sobre a vida de uma família de judeus num ambiente urbano, carregado de pobreza, doenças, problemas alcoólicos e agressões dentro de casa e desunião familiar. O autor, homem cultivado e com formação universitária (Direito), a meu ver, é pioneiro no campo de narrativas sobre imigrantes judeus no Brasil, vivendo em cidade, publicadas em português. (Este romance está traduzido e está à venda em inglês.)
Acredito que Moacyr seria o gigante que foi e ainda é na literatura brasileira mesmo sem este precedente. Como ele declarou em várias ocasiões, parte de suas histórias derivam daquelas contadas pelos pais, parentes e pelos velhinhos de uma casa de idosos, em Porto Alegre. Seu gênio literário transformou-as em obras ficcionais, com toques surrealistas.
Penso que com a Cíntia Moscovich foi um pouco diferente, pois a geração dela já não tinha tanta gente entre nós contando "causos". O material da Cíntia se compõe de quadros mais contemporâneos, narrados e visualizados sob uma perspectiva irônica, o que faz com que suas narrativas sejam tão interessantes e desafiadoras de nossa interpretação. (Há que lembrar do gaúcho Adão Voloch, que trouxe a fazenda Quatro irmãos ao conhecimento público.)
Como surgiu o projeto de traduzir Filipson para o inglês? Já há editora e previsão de publicação?
Eu tive a iniciativa de traduzir Filipson ao inglês, uma tarefa agradabilíssima que já está no fim. Há alguns anos, conversei com um filho da Frida Alexandr, expus meu plano e, a meu pedido, ele me deu autorização por escrito para a exclusividade da tradução. Também conversei com a Roberta Sundfeld, neta da Frida que, na ocasião, me mostrou algumas das raras fotos da avó no campo.
Minha assessora em inglês é Merrie Blocker, americana, ex-diplomata que serviu no Rio Grande do Sul (que foi quem traduziu o livro do Iolovitch, citado acima). Já fizemos isto com um dos capítulos de Filipson (Casamento de Adélia) que será publicado na coletânea Jews Across the Americas, aqui nos Estados Unidos, com data de lançamento para o final deste ano. Acredito que o livro da Frida, uma vez lançado em inglês, será de interesse para estudiosos e público em geral, dada a riqueza de informações realistas contidas no seu raconto.
Está havendo uma abertura, nos Estados Unidos, para livros como este. Estou em contato com duas editoras, uma é universitária, a outra é particular. Não prevejo dificuldade alguma em publicar uma obra tão interessante!