Sancionada na semana passada pelo prefeito Sebastião Melo, uma lei proibindo Mein Kampf ("Minha Luta", em português) de circular em Porto Alegre levanta debate sobre a melhor forma de lidar com o livro em que um dos mais cruéis ditadores da história prega seus ideais racistas, antissemitas e segregadores.
Publicado em dois volumes entre 1925 e 1926, Mein Kampf narra os principais acontecimentos da vida de Hitler antes de se tornar chanceler da Alemanha, o que ocorreu em 1933, além de externar sua visão preconceituosa e odiosa em relação a grupos e etnias. Foi proibido na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, mas entrou em domínio público na virada para 2016, transcorridos os 70 anos da morte de Hitler, o que permitiu sua republicação.
A lei que proíbe Mein Kampf em Porto Alegre entrou em vigor na data de sua publicação, em 31 de maio, mas deve ser regulamentada dentro do prazo de 60 dias. Segundo o texto, torna-se proibido comercializar, publicar, distribuir, difundir e circular parcial ou integralmente o conteúdo do livro, veto que se estende ao e-book, em formato digital. Lei municipal semelhante vigora no Rio desde o ano passado.
Autora do projeto que originou a lei, a vereadora Mônica Leal (PP) justificou que a iniciativa visa a impedir que a obra traga de volta ideias que possam colocar a humanidade em risco.
— A difusão dessa obra tem um potencial lesivo incalculável, além dos danos que já produziu por meio da propagação de ideais nefastos que preconiza, e que protagonizou, seguramente, como uma das páginas mais sombrias da história recente da humanidade — argumentou a parlamentar ao apresentar o projeto de lei na Câmara de Vereadores, em janeiro do ano passado.
Professor adjunto no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do nazismo e da extrema-direita, Michel Gherman diz que há outras obras que ajudam a entender o que foi o nazismo sem o conteúdo apologético de Mein Kampf. Mas acredita que proibi-lo favorece sua circulação em lugares onde não há controle, como a internet, onde pode ser encontrado para download em sites que incitam a violência.
— É muito fácil baixar na internet, em vários lugares. Sabendo que é proibido comprar esse livro, a juventude pode ir buscá-lo em sites de extrema-direita, neonazistas, com conteúdos pró-nazistas — observa Gherman, que também é membro do Núcleo de Estudos Judaicos Contemporâneos da Universidade de São Paulo (USP) e do Observatório da Extrema Direita da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Além do mais, segundo ele, impedir uma leitura por força de lei pode conferir ao livro uma aura de "sagrado", gerando o efeito inverso ao desejado e atraindo ainda mais curiosidade do público, principalmente dos jovens.
— Se eu fosse jovem, teria a impressão que esse livro, ao ser proibido, contém segredos que não podem ser acessados. E quando tiverem acesso a esse livro proibido vão imaginar que estão tendo acesso a algo antissistêmico, perigoso, genial. Mas é um livro ruim, mal escrito, produzido a partir de uma perspectiva obsessiva. Não é chegado o momento de a gente entender que essa proibição gera mais circulação, e mais circulação desregulamentada? Não é chegado o momento de a gente aceitar que a única maneira de lidar com esse problema é tratando dele, exigindo regulamentação? — questiona o sociólogo.
Para ele, Mein Kampf deveria ser publicado em condições regulamentadas por lei, com introdução e comentários de historiadores, sociólogos, filósofos e demais pesquisadores sobre o nazismo. Algo parecido foi feito em 2016 pelo Instituto de História Contemporânea de Munique, na Alemanha, que lançou uma obra com cerca de 2 mil páginas, quase o dobro da original, em que o texto de Hitler é acompanhado de 3,5 mil comentários feitos por estudiosos que refutam dados e informações do autor.
Não é chegado o momento de a gente aceitar que a única maneira de lidar com esse problema é tratando dele, exigindo regulamentação?
MICHEL GHERMAN
Professor de Sociologia da UFRJ
Especialista nos estudos sobre nazismo no Brasil e no Rio Grande do Sul, René Gertz diz que recentemente adquiriu pela internet essa edição crítica de Mein Kampf. Com medo de ser penalizado ao saber que Porto Alegre havia proibido o livro escrito por Hitler, o historiador gaúcho entrou em contato com a loja virtual e pediu para alterar o endereço de entrega.
— Indiquei um endereço de outra cidade para poder receber o livro. Sou um cientista e quero estudar a história de Hitler — diz Gertz, autor de O Fascismo no Sul do Brasil (1987) e O Neonazismo no RS (2012). — É um livro importante sobretudo com as informações alocadas pelo Instituto de História Contemporânea de Munique, notas que dizem "aqui Hitler mentiu", "aqui Hitler está incorreto". Foram especialistas que fizeram esse trabalho durante muito tempo. Há mais explicação do que texto de Hitler nesta obra que é vendida em livrarias na Alemanha.
Para o presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS), Marcio Chachamovich, há outros livros nos quais é possível estudar os horrores do nazismo sem o ódio disseminado em Mein Kampf. Ele considera correta a decisão de impedir que as pessoas acessem seu conteúdo.
— É uma fonte deturpada, não é uma fonte histórica. Tem um viés carregado, racista, supremacista, antissemita, que prega uma raça superior. É considerado a bíblia dos nazistas. Não sei se tem como tirar alguma coisa que possa ser útil — critica.
Embora concorde que a proibição possa gerar maior curiosidade, Chachamovich entende que a circulação do livro fere a lei nacional 7.716, que diz que é crime praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
— Como é um livro com caráter racista e antissemita, deve, sim, ser proibido. Todos esses preconceitos seguem atuais. Nos dias de hoje, com a extrema-direita ressurgindo do esgoto, a impressão que se tem é que não há medo da lei — diz.
Historiador e ex-secretário de Cultura de Porto Alegre, Gunter Axt pondera sobre a apresentação de Mein Kampf nas livrarias. Segundo ele, certa vez entrou em uma loja e viu a obra se sobressaindo em uma prateleira, o que, na sua avaliação, fere o bom senso.
Tem um viés carregado, racista, supremacista, antissemita, que prega uma raça superior. É considerado a bíblia dos nazistas. Não sei se tem como tirar alguma coisa que possa ser útil
MARCIO CHACHAMOVICH
Presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul
— Acho ofensivo entrar em uma livraria e ver o livro em um local de destaque, com uma foto do Hitler. Fica parecendo algum tipo de divulgação. Agora, se o livro fica disponível com uma tarja preta, com uma introdução contextualizando, temos uma situação diferente. Prefiro que as pessoas acessem o livro com uma contextualização que explique o horror que a obra representa do que acessem o livro pela internet — observa Axt.
O debate sobre se Mein Kampf deve ou não ser proibido também levanta questionamento sobre a autonomia intelectual de quem o tiver em mãos. Ao lê-lo, todos vão aderir a suas ideias preconceituosas? Axt, que conhece o conteúdo da obra e a considera "enfadonha e repulsiva", observa que não.
— O George Orwell (escritor inglês, autor de A Revolução dos Bichos e 1984) leu Mein Kampf e não podemos dizer que ele era um nazista ou fascista. Para desenhar aquele mundo distópico que ele concebeu, Orwell acessou determinados textos, e Mein Kampf foi um deles. Um jurista americano chamado Ronald Dworkin tem uma tese de que o Estado precisa tratar os cidadãos como adultos e agentes morais responsáveis. Assim, o cidadão pode acessar um conteúdo repulsivo e entender que se trata efetivamente de um conteúdo repulsivo — reflete.
Para Gherman, é urgente colocar o nazismo e o fascismo como temas de estudo em escolas e universidades, para que as pessoas entendam como surgiram e em que tipo de crenças e visões sobre o mundo estão fundamentados — algo que Mein Kampf, com sua retórica preconceituosa, pode indicar.
— O nazismo e o fascismo não foram produzidos por monstros que de uma hora para outra resolveram matar judeus. Foram produzidos por homens e mulheres que apoiaram o assassinato de judeus. O que produziu Auschwitz foi o discurso de ódio que está em Minha Luta. Historiadores devem explicar o porquê desse livro ter sido escrito e como virou referência para um genocídio na Alemanha. Sua leitura pode nos fazer entender como uma figura como Hitler saiu da obscuridade para a liderança de um país importante como a Alemanha — sublinha o pesquisador.