Um exemplar do livro infantil Amoras, escrito por Emicida, foi alvo de intolerância religiosa praticada pela mãe de um aluno do Ensino Fundamental de uma escola particular de Salvador, na Bahia. De acordo com o g1, na segunda-feira (6), a obra foi encontrada riscada com indicações de salmos bíblicos e textos classificando informações sobre orixás como falsas.
Lançado em 2018, o livro é indicado para crianças de cinco anos e conta a história de uma menina negra que está aprendendo sobre sua identidade. Em conversas com seu pai, ela tem acesso a conhecimentos ligados a culturas e religiões diferentes, além de ser apresentada a grandes ícones da luta dos povos negros, como Zumbi dos Palmares, Martin Luther King e Malcolm X.
Procurada pelo portal, a direção da escola Clubinho das Letras informou que o livro é adotado nas práticas de ensino e foi indicado como sugestão de obras didáticas para um projeto no qual os responsáveis pelas crianças são convidados a comprar livros sugeridos pela unidade de ensino que, em seguida, são levados à escola e disponibilizados entre os alunos.
Pelo menos oito páginas da obra foram vandalizadas, ainda conforme o g1. Na primeira página, o autor fala sobre Obatalá e o caracteriza como o "orixá que criou o mundo". Ao escrever no livro, a mulher caracterizou a informação como falsa e citou o livro bíblico Gênesis.
O livro também traz ilustrações didáticas para caracterizar os orixás. Nelas, foram escritos textos como "essa imagem representa um ídolo" e que os orixás são "anjos caídos". A obra ainda traz um glossário para ajudar crianças a entenderem algumas palavras que são citadas ao longo do texto, como Obatalá, orixás, África e Alá.
Para explicar o que é África, o autor destacou que "é o lugar onde a raça humana começou, e por isso, é conhecida como o berço da humanidade". Ao lado do nome do continente, a mulher desenhou um "x" e escreveu: "Essa informação é falsa".
Os atos de degradação da obra foram direcionados também a Emicida. Como o rapper já contou em várias entrevistas, o seu nome artístico é um acrônimo: a junção das palavras homicida com MC. O nome foi criado depois que ele, que se chama Leandro, passou a vencer diversas batalhas de rap — ou seja, a "matar" os adversários com suas rimas poderosas.
A história por trás do acrônimo foi destacado pela mulher, que pediu que os outros responsáveis "conheçam também a biografia do autor", já que o nome usado por ele tem relação com a palavra "homicida".
O g1 entrou em contato com a advogada criminalista e Conselheira Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) da Bahia, Dandara Amazzi Lucas Pinho, que informou que o caso pode ser considerado racismo religioso. Ela reforçou que todas as escolas brasileiras, públicas ou particulares, são obrigadas pelo Ministério da Educação a implementar o ensino da história afro-brasileira e indígena nas escolas.
— O livro que deveria nortear um comportamento benéfico em sociedade acaba sendo interpretado de maneira equivocada e sendo uma arma para violentar pessoas que possuem um seguimento religioso distinto de quem fez as "notas de rodapé". Conseguimos perceber de forma muito nítida como o racismo religioso está penetrado em cada linha subscrita — disse.
O que dizem as partes
A direção da escola afirmou que é contra as declarações escritas no livro e assegurou que a obra será reposta, para que os estudantes continuem tendo acesso ao conteúdo do livro. Outra medida que deve ser tomada é a convocação da família para uma reunião.
O g1 entrou em contato com a mulher que rabiscou a obra, que não quer ser identificada. Ela contou que não considera o caso intolerância religiosa, pois escreveu no livro que ela mesma comprou e não se negou a levá-lo à escola. Segundo ela, a instituição havia informado que não abordaria religiões neste ano, mas a obra tratava sobre o assunto.
Como, no livro, o cristianismo não era mencionado, ela decidiu escrever as passagens bíblicas à mão, para que, desta forma, os pais dos alunos pudessem ler, se quisessem, diferentes versões para seus filhos.