Primeiro o crime leve, que começava no batedor de carteira e passava pelos vendedores de trouxinhas de maconha nas esquinas, se organizou – e Renato Dornelles estava lá para conferir. Depois, as quadrilhas se alinharam em torno de facções, nos anos 1980 – e Renatinho, como é conhecido, já era um repórter da área de polícia (também especializado em samba, diga-se). A Falange Gaúcha surgiu, imitando o Comando Vermelho carioca, propondo dignidade aos presos, organizando, a partir dos presídios, grandes assaltos nas ruas. O jornalista, porto-alegrense da gema, acompanhou tudo. Entrevistou o chefão Dilonei Melara e os integrantes do seu bando.
Melara saiu da prisão e foi assassinado. A facção liderada por ele virou Os Manos, e Renatinho continuava nas ruas, vendo e relatando tudo. Disso resultou seu primeiro livro, Falange Gaúcha (2008), baseado em duas décadas de pesquisas e no qual mostra as primeiras organizações nascidas nas cadeias gaúchas, os grandes motins, as fugas espetaculares e as desavenças entre os bandidos.
O livro originou dois filmes dirigidos por Renatinho, já em parceria com a produtora, diretora de cinema e também jornalista Tatiana Sager: o curta-metragem O Poder entre as Grades (2013) e o longa Central – O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil (2017). Esse último foi um sucesso internacional. Um de seus requintes foi colocar câmeras de vídeo nas mãos dos presos, que retrataram seu cotidiano. Sem retoques.
Pois ali por 2016 o crime se desorganizou em Porto Alegre. Em vez de firmar pactos de convivência, as facções começaram a tomar pontos de drogas umas das outras. O resultado foi um banho de sangue. Com média de dois homicídios por dia entre 2016 e 2018, a cidade chegou a registrar uma taxa com mais do que o dobro de assassinatos da alcançada no Rio de Janeiro. É aí que entram Renatinho e Tatiana, em mais uma parceria.
No livro lançado agora, Paz nas Prisões, Guerra nas Ruas, a dupla escancara as motivações que levaram à maior mortandade registrada no Rio Grande do Sul desde a Revolução Federalista, a guerra civil entre maragatos e pica-paus gaúchos no final do século 19. E o terrorismo que tomou conta de Porto Alegre, enquanto os chefões, dentro das prisões, viviam em paz.
De 2016 a 2018, Porto Alegre viu um festival de cabeças cortadas, esquartejamentos de pessoas ainda vivas, chacinas de inocentes, mortes de crianças. Algo jamais visto ou relatado em tempos modernos, talvez até mesmo no passado, quando famílias eram poupadas nos entreveros da gauchada. Com um plus: vídeos das barbáries eram enviados aos comparsas das vítimas, para amedrontá-los.
Renatinho e Tatiana descortinam essa cidade bestializada. Pelas páginas do livro ganham voz os criminosos, os policiais, os agentes penitenciários e mais advogados, promotores, juízes, enfim, todos os atores desse grande drama. E, além deles, também os estudiosos da criminalidade brasileira.
Os autores pesquisaram as origens das disputas territoriais e descobriram, sem nenhuma surpresa, que uma das maiores causas é a gentrificação (expulsão de moradores pobres para as periferias). Eles relembram todo o processo de urbanização de uma Porto Alegre cada vez mais elitizada na área central e empobrecida nos bairros distantes, como a Restinga, para onde foram enviados, nos anos 1970, com ajuda de força militar, moradores que relutavam em abandonar as regiões mais nobres da Capital. Existiam até programas governamentais como aquele com o poético nome “Remover para Promover” – só que os removidos não tinham direito a escolha.
O troco, agora, parece vir do tráfico, que avança sobre todas as regiões porto-alegrenses, sem exceção. E cujas facções se expandem cada vez mais para o Interior. Fica evidente que os gaúchos, mais uma vez, exportam modelos, inclusive os sangrentos. Trata-se de uma grande reportagem, com G maiúsculo.