Nos últimos dias, a Companhia das Letras recebeu diversas críticas ao livro Abecê Da Liberdade, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, do selo Companhia das Letrinhas. No título, é contada a história do escritor e advogado Luiz Gama (1830-1882), referência histórica da luta abolicionista no Brasil. Na obra, são descritas cenas em que crianças negras pulavam corda com correntes e brincavam de escravos de Jó enquanto estavam em um navio negreiro, o que vem repercutindo mal entre o público. Diante disso, a editora decidiu recolher o livro do mercado e pediu, em nota, desculpas aos leitores.
"Lamentamos profundamente que esse ou qualquer conteúdo publicado pela editora tenha causado dor e/ou constrangimento aos leitores ou leitoras. Assumimos nossa falha no processo de reimpressão do livro, que foi feito automaticamente e sem uma releitura interna, e estamos em conversa com os autores para a necessária e ampla revisão. De toda maneira, como consideramos a crítica correta e oportuna, imediatamente disparamos o processo de recolhimento dos livros do mercado e interrompemos o fornecimento de nosso estoque atual. Esta edição agora está fora de mercado e não voltará a ser comercializada", afirmou em comunicado emitido neste sábado (11).
"Aproveitamos para reforçar que estamos atentos aos processos de mudança em nossa sociedade e temos buscado formas de reler, a partir de uma perspectiva mais democrática e inclusiva, as obras infantis da Companhia, que são publicadas desde 1992, quando a Companhia das Letrinhas foi fundada. Há também um compromisso com os novos títulos: eles devem estar alinhados com as diretrizes de pluralidade e inclusão que vêm regendo o Grupo como um todo", acrescentou.
A obra havia sido lançada originalmente em 2015 pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, e incorporada automaticamente ao catálogo da Companhia das Letrinhas quando a Objetiva foi adquirida pelo grupo. Ao UOL, um dos autores do livro, Marcus Aurelius Pimenta, contou que a produção não foi acompanhada por nenhum especialista ou autor negro.
— É difícil uma pessoa não se emocionar com a história (de Luiz Gama) e comigo não foi diferente (...) Não havia muitas fontes, nem tantas informações novas, mas era o suficiente para se preparar uma estrutura — contou ele.
Torero, por sua vez, afirmou que o livro infantil é uma obra de ficção, sem compromisso com exatidão histórica. Em relação às cenas em que os jovens acham divertido dançar para mostrar seus atributos físicos durante sua venda como escravos, o escritor aponta que a ironia é uma das formas de se trabalhar a dor.
— Se as crianças não soubessem o que ia acontecer (na escravidão), talvez elas brincassem. Crianças brincam em velórios, por exemplo. É uma forma de fugir da dor. Também tínhamos que ser fiéis ao Luiz Gama, um homem que tinha muito humor, tanto que escreveu Trovas Burlescas. Talvez fosse mais fácil fazer algo dramático. Mas resistimos a essa tentação. Uma criança é mais complexa do que isso — argumentou.
Ainda ao UOL, a historiadora Beatrice Rossotti contou que analisou as edições do livro e encontrou erros históricos "sérios". Os relatos dão conta que as crianças não brincavam nos navios, uma vez que as condições eram precárias e muitas pessoas morriam no percurso. Além disso, pontua que o cenário de diversão cria um imaginário de que a escravização de negros foi leve.
— O livro propõe-se a contar uma parte do que foi a história do Brasil, tanto é que se intitula abecedário da liberdade, mas relativiza o que foi uma das experiências mais traumáticas que a população negra já vivenciou em sua história — argumenta.