Celso Gutfreind (*)
Há muitas histórias parecidas com esta, na grande história da literatura. Dostoievski pode ser o rei delas, entre o jogo mundano e a obra-prima; Hemingway, o príncipe, entre o álcool e as frases. E tem aquela mais recente, do contemporâneo Philip Roth e a sua coluna vertebral sacrificada para um livro brotar no mundo. O romancista seguiu escrevendo de pé aquilo que depois leríamos sentados ou até mesmo deitados. Ao contrário do senso comum denunciando egoísmos narcísicos, esses artistas são mesmo uns generosos.
E já não há mais dúvidas: a retirada precoce de cena de um Rimbaud, um Salinger ou um Nassar são exceções para confirmarem o inusitado da regra. Autores costumam, sim, sacrificar seus corpos pela sobrevivência de uma alma ávida pela transcendência. Nada os detém, em nome de buscarem a expressão do seu eu no mundo de todos os outros. Só não é sempre que podemos ser testemunhas oculares – ou auriculares – desses episódios em que a arte se impõe à vida.
Pois me foi concedido, recentemente, o privilégio tenso de ser uma dessas testemunhas, com Dante Alighieri, esse poeta que cometeu a proeza de sobreviver aos séculos, às tradições e às traduções. Calma, leitor, não estou delirando: o corpo em si do bardo fiorentino está morto e enterrado. Estou falando de Armindo Trevisan, nosso vivíssimo poeta, esse que vive aqui perto de nós e teve a generosidade de nos oferecer o seu Dante no livro Por uma Leitura Atual da Divina Comédia (editora AGE, 2021). Sim, o seu Dante. Porque assim é a literatura quando arde, uma para cada leitor, e um tanto tirânica em seus chamados irrecusáveis.
Trevisan atendeu ao seu, e o seu Dante nasceu faz décadas, quase quando o autor se fez leitor. E continuou, com as dicas eruditas de seu amigo Murilo Mendes, que já vivia na Itália. Armindo ainda doutorava-se na Suíça e cruzou os Alpes para uma visita de alto nível. Encontro mundo afora e adentro de poetas grandes e, desde então, não houve edição acessível ou inacessível da Divina Comédia que o nosso poeta não tenha consultado, lido, relido, treslido.
Católico estudioso e praticante, deu ênfase, em seu longo ensaio, à dimensão religiosa do italiano, mas foi secular e artista universal o suficiente para nos oferecer um Dante de todos os credos, como é, no fundo, a poesia, sentido e melodia em um só corpo transitório, transcendendo os nomes das almas perenes. E o fez sem que esses Dantes perdessem a essência daquele Dante, como Einstein lamentava de sua teoria da relatividade, quando a simplificava diante da súplica de alguém na plateia – diz-se que uma senhorinha – e depois dizia, com um humor igualmente genial:
– Entendeu, agora, depois da minha segunda explicação? Mas, assim simplificada, já não é mais a teoria da relatividade.
No entanto, a prática de Armindo com Dante tornou a sua poesia ainda mais legível, sem perder aquela pegada máxima do ideal poético, ao se abrir, não saturado, para infinitas possibilidades de atitudes das línguas e enfrentar a linear finitude, como uma religião, mas já sendo divina e sagrada em si mesma, com o altar erigido na página e Deus presente na força da expressão humana.
Meninos, eu vi. Um trabalho hercúleo, inadiável, de 10 meses decisivos, depois de algumas décadas gestando, oito a 10 horas por dia, sem recuar à pandemia ou a afazeres cotidianos, o que lhe custou uma severa pneumonia, seguida de “muita água na pleura”, desdobradas em uma insuficiência cardíaca no peito de um autor que tão somente (tão somente?) perseguia a harmonia rara entre coração e cérebro. Mas o que seria de nosso maior patrimônio – o cultural – sem a loucura ou a utopia?
Meninas, eu vibrei com a recuperação paulatina do Armindo, convalescente saudável de sua própria obra, pleura secando ao sol da linguagem e coração faceiro-fatigado retomando o seu ritmo poético-persistente. Que arte que é arte faz isso: depois de ferir fígados, colunas, corações e outros órgãos vitais de um corpo finito e frágil, utiliza a sua própria força para suturar a metáfora na alma e relançar o criador na próxima aventura, ecoando Dantes ou Armindos.
Pois, ao contrário das vidas em si, uma arte cuidadosa torna-se interminável para as novas vidas que teimam em surgir, essas que nascem incompletas e depois vão sendo preenchidas pela poesia do mundo.
(*) Psicanalista e escritor, autor de O Terapeuta e o Lobo (Artmed), entre outros
"Poema à Memória de Dante"
Poeta e crítico de arte, autor do livro Por uma Leitura Atual da Divina Comédia (editora AGE, 2021), Armindo Trevisan escreveu o poema abaixo com exclusividade para GZH:
Somente a ti, Altíssimo Poeta,
foi dado regressar a este Mundo
após a tua viagem imaginária
aos confins da Morte... e da Ressurreição.
Teu gênio viu – e pôde descrever
o assombroso e grande mar do Ser,
em cujo seio, com suave amor,
tiveste compaixão de Francesca e Paolo.
Não os livraste do Inferno! Preferiste
que se amassem no ardor de suas chamas!
Foi, porém, no Purgatório e no Paraíso,
que tua Poesia voou até à lucidez
inspirando-te os versos à Picarda
e a Pia dei Tolomei! Como foi bela
tua misericórdia por Buonconte
da Montefeltro! Constrangeste
um demônio à humilhação:
“Tu me arrebatas uma alma imortal
por uma lágrima!” Pobre seres humanos!
Compreendeste nossa vulnerabilidade
e mereceste anunciar-nos a Esperança:
“Ó cristãos orgulhosos, miseráveis,
que, por visão da mente adoecida
pondes vossa fé nos passos invertidos;
pensais que somos só vermes nascidos
para formar a celeste borboleta?”.
Ao aceitares as censuras de Beatriz,
chegaste aonde não chegou poeta algum.
Eis porque ouviste como quem ignora a música,
o doce som da giga, e o tim-tim
de uma harpa que jamais será esquecida.
descobriste o prazer da Luz Divina
refletido nos olhos da Menina
que, num templo de Florença, te encantou.
Ah, Poeta nenhum jamais no mundo
exclamou: “Achei-me no estado
de quem aspirando ao que não há,
se contenta em esperar”... Ó Dante,
depois que Beatriz elevou tua mente
e nela implantou o Paraíso:
“Luz intelectual, plena de amor,
amor do bem real, pleno de alegria,
alegria que transcende toda doçura”,
pudeste contemplar a Rosa Cândida
da Milícia Santa, que em seu Sangue,
Cristo escolheu como sua Esposa.
Eis-nos, enfim, no Empíreo! Aqui pudeste
dirigir ao Primeiro Amor teus olhos
fixando a Luz que olho algum fixou.
Poeta, tua Comédia – tão divina
e tão humana – nos conduz
ao umbral de um espaço e de um tempo,
no qual teus versos (como bem o dizes)
nos elevam às incorruptíveis estrelas
que, no alto de suas noites cintilantes,
nos tornam menos tristes e infelizes!
A live
Armindo Trevisan participará da live “Um diálogo atual com a Divina Comédia” às 17h de terça-feira (14). A transmissão será ao vivo no canal PUCRS Cultura do Facebook e no canal da PUCRS no YouTube. Participam Gilberto Schwartsmann, que escreveu Divina Rima (Sulina, 2021), e o professor Antonio de Ruggiero, do programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade.
O espetáculo
Para marcar os 700 anos da morte do poeta italiano Dante Alighieri, a Bell’Anima Produções preparou dois projetos especiais. Um deles é o espetáculo A Paixão de Dante, obra composta por Vagner Cunha para coro e orquestra. A estreia mundial do concerto poderá ser acompanhada de qualquer lugar do mundo, em transmissão ao vivo e bilíngue, com cantos em italiano e legendas em português, pelo site apaixaodedante.com. A apresentação também poderá ser vista presencialmente nos dias 14, 17 e 18 de setembro, sempre às 20h, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, que opera com capacidade reduzida, seguindo protocolos sanitários. Os ingressos estão à venda na plataforma Sympla, com valor único de R$ 33 para quem optar por assistir online e preços de R$ 40 a R$ 160 no presencial (há 10% de desconto para quem estiver em dia com a carteira de vacinação contra a covid-19).
Com duração aproximada de 150 minutos e um intervalo entre cada parte, A Paixão de Dante tem regência do maestro Antonio Borges-Cunha. Reúne 30 instrumentistas e três solistas: o tenor Flávio Leite, que interpreta Dante, a soprano Paola Bess, que dá vida à personagem Beatriz, e o barítono Carlos Rodriguez, que desempenha o papel de Virgílio. Além disso, há as sopranos convidadas Carine Fick e Carla Knijnik, como as ninfas, e Elisa Lopes, que representa Francesca. Há ainda mais de 40 cantores do Coral Madrigal Presto.
O concerto tem três divisões. A primeira, diz o material de divulgação, apresenta o início da jornada de Dante na selva escura, passando pelas portas do Inferno e vislumbrando a bela jovem Beatriz, além de introduzir os demais protagonistas da parte inicial de A Divina Comédia. No segundo segmento, são percorridos oito círculos do Inferno. Por fim, o nono e último círculo.
A nova tradução
A Paixão de Dante tem textos selecionados por José Clemente Pozenato a partir da tradução inédita feita pelo autor de O Quatrilho. Publicada pela Fundação Antonio Meneghetti, a edição comemorativa de A Divina Comédia: Inferno (236 páginas, R$ 33) procura adotar uma linguagem que aproxime o público brasileiro da obra original. Haverá venda de exemplares, leituras e sessões de autógrafos com Pozenato no Foyer Nobre do Theatro São Pedro, no dia 14, das 18h às 19h45min.