Natalia Pietra Méndez (*)
Ana Maria Colling, uma das principais pesquisadoras brasileiras sobre história das mulheres, busca em A Cidadania da Mulher Brasileira: uma Genealogia compreender as origens dos discursos que pavimentaram a trajetória da cidadania feminina em nosso país. Através de vasta documentação, tratados religiosos, filosóficos, médicos e jurídicos, examina como a diferença sexual foi elaborada e transformada em norma, atribuindo às mulheres a condição de cidadãs de segunda classe. A autora escrutina as margens da história e suas entrelinhas buscando vestígios do passado ignorados pela historiografia tradicional, escrita por homens. Através de pesquisa densa, deparou com palavras e vozes femininas que resistiram às tentativas de exclusão e apresenta trechos instigantes de textos literários, filosóficos, jornais femininos, peças teatrais, pronunciamentos e outros achados, além de dois documentos que constam no anexo da obra: Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, escrita por Olympe de Gouges durante a Revolução Francesa, e o Estatuto da Mulher Casada, sancionado no Brasil em 1962.
Em cinco capítulos, tece uma narrativa que parte de mitos fundadores, passa por filósofos gregos, tratados religiosos da cristandade europeia na Idade Média, códigos jurídicos modernos e as principais legislações portuguesas e brasileiras. Tempos diferentes, mas com discursos ancorados no patriarcado, ordem social que concentra o poder político, econômico e jurídico em mãos masculinas.
Como é possível contar a história das mulheres a partir de um universalismo que não as incorporou como sujeito? A pergunta se relaciona com o objeto do livro que é analisar a conquista da cidadania feminina no Brasil e os paradoxos dessa construção.
A partir de perspectivas teóricas que põem em diálogo os estudos de gênero, Michel Foucault e debates interseccionais, indaga quais os limites do uso da categoria mulher. E aponta que não existe uma mulher ao longo da história, mas sim mulheres plurais, lembrando que gênero deve ser examinado considerando relações sociais, como classe, raça e geração.
No final, reflete sobre as tentativas de barrar o acesso à cidadania das mulheres no Brasil na segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20. Para a autora, as representações que atravessaram o período impuseram a noção de uma essência feminina naturalizando a família e o lar como lugares naturais para elas. O Anjo do Lar, descrito por Virginia Woolf no ensaio Profissões para as Mulheres, um ser encantador que “domina todas as difíceis artes da vida familiar”, condensava o modelo de feminilidade da burguesia e classe média. Por extensão, se constituiu como norma para avaliar as mulheres, mesmo as que por sua condição de pobreza, raça/cor ou status social estavam distantes desse ideal de domesticidade.
Ao entrelaçar comparações de cenários internacionais, do Brasil e os debates na política gaúcha, o livro proporciona uma compreensão abrangente dos processos históricos nos quais se inserem as lutas pela cidadania e o sufrágio feminino. O último capítulo traz uma reflexão sobre as principais ideias favoráveis e contrárias ao voto das mulheres. No século 20, esses debates evidenciaram as tensões em torno das fronteiras entre o público – definido como um espaço por excelência masculino – e o privado, lugar destinado às mulheres, de acordo com os ideais sociais predominantes.
O livro analisa os discursos que tornam a subordinação feminina um fenômeno transgeográfico e de longa duração. E fala de mulheres que não aceitaram o discurso masculino como limite, desafiaram fronteiras de gênero e abriram novos territórios. A história é paradoxal, considerando que a Constituição de 1934, que reconheceu o sufrágio universal no Brasil, conviveu com um Código Civil que manteve as mulheres, especialmente as casadas, na condição de incapazes. Mas o paradoxo não termina aí. A conquista formal da cidadania não resultou na superação de desigualdades no acesso a direitos humanos, sociais e econômicos, o que torna o livro referência imperdível para quem pesquisa a história das mulheres. Sem abrir mão do rigor teórico e metodológico, é um texto apaixonante para todas as pessoas que se interessam pelo tema.
(*) Professora no Departamento de História da UFRGS
Onde comprar
Em Porto Alegre, o livro A Cidadania da Mulher Brasileira: uma Genealogia (editora Oikos, 294 páginas, R$ 50 em média), de Ana Maria Colling, está à venda nas livrarias Baleia, Bamboletras, Cirkula, Ladeira, Londres e Traça. Pode-se adquirir diretamente com a autora, em versão autografada, pelo e-mail acolling21@yahoo.com.br