Tendo a morte como tema central, A Hora da Essência (editora Planeta, 264 páginas, R$ 54,90 o livro e R$19,99 o e-book) é o novo livro do padre Fábio de Melo. Graduado em Filosofia e Teologia, pós-graduado em Educação e mestre em Teologia Sistemática, Melo propõe na obra uma reflexão sobre o fim da vida, além da importância de reconciliar-se com si mesmo e viver a própria essência.
O livro apresenta diálogos entre duas mulheres: Sofia, paciente de um hospital que está próxima da morte, em estágio avançado de câncer, e Ana, uma enfermeira bastante prestativa e falante. No hospital, as duas passam a conversar sobre a vida e suas escolhas. Sofia tornou-se solitária e amargurada após o fim de seu casamento. Seu único filho, o qual ela afastava do próprio pai, está desaparecido. Em seu leito de morte, ela passa a refletir com Ana sobre o seu passado, compreendendo seus equívocos.
Poucos dias após o livro ser lançado, a mãe de Melo, Ana Maria, morreu aos 83 anos em decorrência da covid-19, no dia 27 de março. A partir daí, a obra ganhou um novo significado para o padre.
Em entrevista a GZH, Melo falou sobre A Hora da Essência e refletiu sobre questões abordadas no livro.
Qual foi o seu ponto de partida para A Hora da Essência?
É muito difícil precisar em que momento um livro começa a nascer dentro de nós. Eu acredito que nós convivemos com a temática durante um bom tempo, até a gente perceber que já começou a escrever o livro dentro de si. É um processo que vamos reconhecendo aos poucos. Num primeiro momento, uma inquietação. Em A Hora da Essência, a inquietação foi a de uma amiga, Marina Patrus, que precisou enfrentar o câncer. Mas o desenvolvimento da questão eu acho que é fruto da observância de tudo aquilo que nos cerca. Morrer pra mim sempre foi uma questão difícil. Filosoficamente, é muito difícil compreender a morte, porque nós só vivemos a morte uma única vez, verdadeiramente, que é quando partimos. Mas nós podemos experimentá-la de alguma forma na morte dos outros. Então, filosoficamente sempre me inquietou muito a questão da morte, tudo aquilo que gira em torno dela. Acho que o autor sempre tem dificuldade de dizer quando é que o livro, o insight inicial nasceu, mas acho que, em mim, ele é o resultado de muitas vivências. Já vi muita gente morrendo de maneira muito próxima por causa do meu ministério, do meu trabalho. Já vi muita gente perdendo pessoas amadas e essenciais. Então, acredito que hoje o livro é o resultado de uma vida toda.
Quais foram suas referências para construir as personagens Sofia e Ana? Você se inspirou em pessoas conhecidas?
Sim, à medida que escrevia, eu tinha o rosto dessas pessoas. Para Sofia, foram muitas. Não posso dizer que foi uma única pessoa que me inspirou a construção da personagem. Uma vez eu precisei acompanhar uma mulher que tinha uma história muito semelhante à de Sofia. À medida que os sofrimentos foram lhe abatendo, ela foi se perdendo da essência e se transformando numa mulher muito amarga, porque não soube viver bem cada etapa de sua dor. Isso acontece com todos nós. O sofrimento pode nos amargurar muito e nos prejudicar na essência. Quando nós nascemos, nós não somos amargor, nós não somos rancores, tudo isso é construção que a vida vai colocando. E aquela mulher que havia se tornado outra precisava morrer. Ela sabia que morreria em breve por causa de um acidente vascular que ela tinha, muito silencioso, que a qualquer momento poderia matá-la. E ela viveu. Eu me lembro que ela me procurou justamente pra falar sobre isso, que estava muito amargurada com a situação pessoal dela, com aquele momento atual, mas que percebia que aquele amargor estava muito ligado a uma incapacidade que teve de reconciliar-se consigo mesma. De alguma forma, pude ajudar naquele momento. Então, muitas pessoas me inspiraram a personagem Sofia. E Ana, a cuidadora, é uma referência consciente a uma mulher que eu conheci há uns quatro anos, Ana Claudia Quintana, que é uma médica que trabalha com serviço paliativos. Ela acompanha as pessoas que sabem que vão morrer. Ana me ensinou muito sobre viver e morrer. Num primeiro momento, quando ainda não éramos amigos, eu li o seu livro, A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver. E depois, pessoalmente, me ensinou muito em uma amizade que me fez muito bem, me fazendo também ter muito respeito pelo processo de morrer.
A Hora da Essência é uma obra que reflete sobre a morte e a experiência humana. No final de março, você teve que lidar com a perda de sua mãe. Como o livro dialoga com o momento que você tem enfrentado?
Pois é, não imaginava, no momento em que eu escrevia esse livro, que ele seria lançado e que alguns dias depois a minha mãe estaria morta. Um livro sobre morte, no momento em que eu precisei viver a quebra do simbólico primitivo, o simbólico mais definitivo na vida de uma pessoa, que é ser filho de alguém. O livro acabou ganhando um significado novo para mim. A minha mãe não teve a oportunidade de tê-lo nas mãos. Era sempre a minha primeira leitora. Toda vez que eu lançava um livro, fazia questão de mandar um para ela. Minha mãe lia e gostava de me prestigiar como autor. Então, acredito que, hoje, ter de viver o luto, lançando um livro sobre a morte e as questões que isso nos traz, fica ainda mais especial. A Hora da Essência é uma reflexão que eu considero muito válida para os nossos dias, muitas pessoas estão perdendo pessoas especiais. Muitas pessoas estão doentes sabendo que vão morrer, com a consciência muito viva sobre a morte. Acho que é um livro que pode de alguma forma oferecer um amparo a quem precisa viver um dos lados dessa história.
Ana comenta que a consciência de que a vida está sempre próxima do fim traz muitos benefícios. No caso, ela fica mais seletiva, escolhendo melhor o que deseja viver. Que tipo de benefícios nós podemos ganhar com essa consciência?
Nós ficamos mais vivos quando conscientes, quando em estado de presença. Estou presente onde devo estar. Nem sempre é assim. Às vezes eu estou, mas não estou. Estou repartindo. A minha ansiedade me reparte, me esquarteja. Me impede de estar em essência, de estar presente naquilo que a vida está me convidando a viver. É muito comum nos dias de hoje que a nossa ansiedade nos posicione no passado ou no futuro, mas nunca no presente. Somente no momento presente a vida é real. Isso é um grande benefício, estar onde se está, com quem está, fazendo o que precisa ser feito, amando o que precisa ser amado, perdoando. Então, é sempre um grande benefício, e é um fruto da espiritualidade. Viver na essência, com todos os nossos sentidos aguçados para a percepção daquilo que a vida está nos oferecendo.
O pai de Ana costumava dizer que, se não descobrirmos o que nos ressuscita, a vida nos mata antes da hora. Vou lhe fazer a mesma pergunta que Ana faz para Sofia: "Padre, onde é que você cava a sua ressurreição?"
Eu cavo a minha ressurreição na minha vida interior. Eu preciso dela. Sou um homem muito público. Há muitos anos eu sou um homem muito público. E eu preciso construir uma vida de bastidores para continuar sendo quem eu sou. A vida pública, muitas vezes, me mata, me cansa, me esgota. A vida particular me restaura, me devolve ao útero da minha mãe, me gera de novo. E o que eu faço nessa vida interior, nessa vida particular? Eu leio, estudo, escuto música, perfumo o ambiente, tomo banho com consciência, como de forma regrada e inteligente, procuro ter uma atividade física. Então, o conjunto de uma vida saudável, para mim, faz muito sentido. Um dia descobri que preciso ser amigo do meu corpo e, sendo amigo do meu corpo, eu favoreço o meu espírito. Então, fico muito atento às sedes da minha alma, às sedes do meu corpo. E é assim que eu vivo essa ressurreição diária. Dando atenção a essa vida interior.
Sofia é uma personagem que se fechou em si após ser abandonada pelo marido. Ela isola seu filho do pai. Também fica sem amigos. Alimenta sua infelicidade com a felicidade do ex. Ana aponta que Sofia se encastelou em sua autocompaixão. Este é o caminho mais fácil diante da dor? Qual seria o mais difícil?
Cresci num ambiente em que as pessoas se vitimavam demais. Se interpretavam vítimas o tempo todo. Então, o meu caminho natural é a vitimização, mas eu luto contra ela. Acredito que toda vez que a dor bate à nossa porta, a nossa primeira tentação é acreditar que nós não merecemos, mas quem disse isso? Todas as pessoas sofrem, por que que eu também não vou sofrer? Todas as pessoas perdem. Por que eu não vou perder? Todas as pessoas sofrem em algum momento da vida com uma infidelidade. Por que eu não vou sofrer? Quando a gente sai da compreensão ingênua e fica mais realista, naturalmente rejeitamos o vitimismo e deixamos de nos colocar na torre para que alguém venha nos salvar. Sofia viveu justamente isso. Num primeiro momento, começou a interpretar que nada daquilo ela merecia. Sim, num primeiro momento nós podemos dizer: "Você não merece". Mas qual é a postura mais saudável diante daquilo que a gente acha que não merece? Não é fazendo com que a sua infelicidade seja nutrida pela felicidade do outro. Não. É arregaçando as mangas e dizendo: "Tá bom, a vida me fez isso? Então vamos ver o que eu posso realizar com tudo isso que a vida me trouxe". Acho que a resposta mais inteligente diante da dor e do sofrimento é vivendo aquilo que precisa ser vivido: se precisa chorar, chore; se precisar murmurar, murmure; se precisar lamentar, lamente; mas dê um prazo pra tudo isso. Não se acostume a ficar chorando sempre pelos motivos que já são antigos. Supere-os. A gente precisa renovar até as nossas dores. Até os motivos pelos quais nós choramos precisam ser renovados.
Em um momento, Ana observa que a maioria das pessoas busca nos outros o que deveria encontrar em si. Como aprender a buscar a própria essência pode transpor esse costume de ser alheio a si mesmo?
O interesse por si faz com que, naturalmente, você percorra os caminhos de dentro, que são os lugares do autoconhecimento. Se a gente não anda o caminho de dentro, fica muito difícil ter acesso à nossa verdade, inclusive, acessar a nossa essência. Há pessoas para as quais você pergunta: o que você quer da vida? Elas não sabem dizer. Há pessoas para as quais você pergunta: o que você gostaria que, de fato, lhe acontecesse? Geralmente, elas respondem coisas muito superficiais. Como se pudessem ter acesso somente à pele da existência, e nunca ao núcleo. As perguntas mais profundas só são acessadas quando nós buscamos por elas. Dificilmente se afloram na superficialidade. É por isso que o caminho do autoconhecimento vai nos tornando cada vez mais maduros para perceber que há coisas que nós não podemos esperar dos outros, porque só nós podemos nos oferecer. Mas, para a gente se oferecer, precisamos primeiro nos conhecermos. Tudo aquilo que eu me dou e me ofereço, de alguma forma, precisei descobrir que tinha. Há pessoas que pedem aos outros sem antes terem feito a busca em si mesmas. Há pessoas que fazem o caminho mais fácil: eu me desconheço e fico eternamente me buscando nos outros. É claro que no outro eu também me reconheço, mas isso é desdobramento. O outro me estimula o autoconhecimento, mas eu preciso andar os caminhos de dentro para poder viver o processo. Acho que é assim que a gente favorece a presença cada vez mais madura, essencial. É assim que a gente vai se tornando cada vez mais dono de nós mesmos, pois vamos tomando posse daquilo que somos mediante a experiência de nos autoconhecermos.
No decorrer da história, Sofia reflete sobre os erros que cometeu ao se dedicar excessivamente aos outros. Que tipo de perdas isso pode trazer para nós mesmos?
Eu gosto muito do conceito de ser mítico de pessoa. Ser pessoa consiste em, num primeiro momento, ser de si mesmo, possuir-se. Num segundo momento, possuindo-se, oferece-se aos outros. Eu não posso ser pessoa somente me possuindo, eu não posso ser pessoa somente me dando aos outros. O que me faz pessoa é o ciclo, é o processo. Nós, muitas vezes, queremos dar o que não temos. E isso é um desastre. Quando eu quero oferecer ao outro algo que eu ainda não conquistei em mim. Somente depois que você se possuir, que você for seu, é que você poderá ser dos outros, ser para os outros. Causamos um estrago emocional enorme quando nos doamos sem ainda nos termos. Doamos o nosso egoísmo, doamos o nosso estrago emocional, a nossa indisposição. Jogamos no outro tudo aquilo que em nós ainda é não trabalhado, tudo aquilo que em nós ainda precisa ser burilado, porque ainda não chegamos ao melhor de nós mesmos.