Por Deivi Trombka
Advogado, autor de “Democracia Deliberativa Ambiental: o Passado como Requisito Comunicativo de Legitimidade do Direito” (2018)
A crença na imortalidade da alma é um dos pilares do judaísmo. Coincidência? Evidentemente não: pura sintonia. A mesma sintonia com que tabelaram Salim Nigri e Lupicínio Rodrigues, entrelaçando para sempre o judaísmo e a negritude no hino do Grêmio. Da faixa exposta no Fortim da Baixada pelo gênio do relacionamento humano de fé mosaica (“Com o Grêmio onde estiver o Grêmio”), o gênio negro da métrica e da música extraiu o hino do clube, no qual consta o registro de uma alma imortal no sentido judaico. De Lara, o craque imortal, zelador do Fortim que se despediu do Grêmio após o Gre-Nal Farroupilha de 1935, a alcunha passou a designar o próprio clube, como destino arraigado à própria origem. Exatamente como “A Fonte” – Salim Nigri. A Fonte, novo livro de Léo Gerchmann, explica isso detalhadamente, mas de maneira lúdica e não linear, sem perder o rigor histórico e a pegada jornalística capaz de honrar, sem imprecisões, a prodigiosa memória da Fonte.
Salim era judeu sefaradi (termo que designa preponderantemente os provenientes da Península Ibérica) mas também se refere aos oriundos do Marrocos, da Tunísia e do Egito. Filho de Alberto Nigri e Alegria Barros, teve grande influência dos avós Salomão e Estrela, com quem morou. Sempre teve uma relação próxima e afetiva com o pai, fundador da sinagoga Centro Hebraico Rio-Grandense e atuante em todas as instituições da comunidade judaica que estavam em formação na década de 1920, quando ele nasceu. Isso condicionou sua vida e seu destino de tenacidade e fome de viver gregariamente.
Quando estourou a Segunda Guerra Mundial, Salim fez seu Bar-Mitzvá no Centro Hebraico. Na cerimônia, em que o menino judeu de 13 anos é recebido no mundo das responsabilidades, foi pela primeira vez chamado à Torá, o pentateuco, conjunto dos cinco livros de Moisés que formam o chamado Velho Testamento. Para os judeus, a Torá é a fonte das fontes, o livro dos livros. Aquele que seria A Fonte deparou-se com sua própria fonte ainda menino.
De sócio do Grêmio aos 14 anos à biblioteca do clube foi um pulo fácil para o intrépido Salim. Nada mais digno das tradições judaicas do que conquistar posições pelos livros. Salim passou a ser parte do Grêmio pela biblioteca. Coincidência? Não, evidentemente. Puro entrosamento.
Ele foi o funcionário da biblioteca que, a partir de 1945, mudou a história do Grêmio, elevando ao patamar da imortalidade os seus personagens. Com o fim da Segunda Guerra, havia uma demanda por vida e animação. Salim convenceu o então presidente do clube a formar um Departamento de Torcida, a exemplo do que também ocorria no Inter. O então presidente consentiu, mas incumbiu alguém considerado mais velho, Francisco Maineri, de comandar os trabalhos. Foi Maineri que incentivou o chargista da Folha da Tarde a criar o Mosqueteiro, mascote gremista até hoje.
A figura do Mosqueteiro encarna o lema de Alexandre Dumas: “Um por todos e todos por um”. Ora, prezado leitor, e qual é a sentença mais sagrada do judaísmo? “Ouve Israel! O Eterno é nosso D’us! O Eterno é um!” (“Shemá Yisrael, adonai Elohênu adonai Echad”). Dizem os sábios que essa frase resume toda a Torá, significando, em qualquer linha do judaísmo, seja religiosa ou não, que D’us é um porque é o mesmo para todos, num princípio milenar de igualdade e justiça, solidariedade e força, escuta e ação. O Grêmio do Salim está na Torá!
E ele sabia disso. Se por acaso não soubesse, por certo intuía. E foi assim que, em 1946, fez exibir no Fortim da Baixada a famosa faixa que inspirou Lupicínio. Coincidência? Claro que não. Tenacidade com talento.
O texto de Gerchmann tem algo de Salim em sua cadência. Faz tempos históricos áridos e complexos parecerem um passeio divertido. Salim foi assim. Enfrentou agruras como a cegueira precoce e o antissemitismo na vida escolar tirando lições engraçadas para contar aos amigos e aos netos. Confraternizou com a comunidade árabe no comércio da Voluntários da Pátria e até pregou cartazes do Inter em nome de uma amizade. Logo ele, que praticamente só tinha roupas que variavam tonalides entre um ou outro tipo de azul. Mas a amizade é maior. A humanidade é maior.
Alguma mente mais tacanha poderia pensar que o livro fica adstrito aos afetos gremistas e judaicos. Ledo engano. É verdade que, para os gremistas, não ter lido esse livro será em breve uma vergonha, e, para os judeus, uma transgressão que dificultará o jejum no Dia do Perdão. Mas não é menos verdade que se trata de uma obra para deleite de todas as pessoas de viés humanista, amantes do rádio e da imprensa, do futebol e da cultura, da vida, dos amigos e da família.
Quem não gosta de uma história de amor? Impossível não se emocionar quando ela é verdadeira e lindamente narrada, na pena sensível de Gerchmann. A história de Salim e sua Luci (Vera) é algo de arrepiar, desde o começo e na sua continuidade com a filha Vera Lúcia e os netos Bruna e Rodrigo. Os relatos de Bruna sobre o avô Salim são de inspiradora emoção, verdadeiras lições de vida.
Dos episódios da vida de Salim, ouvinte inveterado de rádio que se tornou A Fonte de consagrados jornalistas do Estado, Gerchmann parte para a história do mundo e da cidade, em digressões que arregimentam o todo de uma vida. Aliás, o Talmud (compilação da sabedoria oral judaica) ensina que cada vida é um mundo. Por essa razão, salvar uma vida é salvar o mundo inteiro. A história da Fonte, nesse contexto, corresponde a tornar eterna – imortal – a história de uma vida em toda a sua plenitude e em aspectos até então não divulgados em sua magnitude e importância.