Por Josely Teixeira Carlos
Pesquisadora da USP, pós-Doutora em Análise do Discurso e Música (Paris X)
Quando Bob Dylan foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2016, o mundo deu-se conta do valor da canção de autor, entendida como uma simbiose sui generis entre um texto escrito e um cantado. No anúncio de Dylan como o premiado, a porta-voz da Academia Sueca afirmou que os jurados o escolheram por ele ter “criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da música norte-americana”. O papel do músico poeta imbricava-se, de uma vez por todas, com o do poeta músico, fazendo com que as esferas da canção e da literatura mobilizadas por Dylan sejam interpretadas muito mais através de seus limiares do que por seus limites.
No Brasil, todo mundo que acompanha a produção musical de Chico Buarque de Holanda já sabe, há pelo menos cinco décadas, do real valor da canção de autor. Antes dos prêmios, tanto Dylan quanto Chico (que foi condecorado com o Prêmio Camões, em 2019) ganham “nobéis” de cada ouvinte, cada vez em que nos deliciamos com suas letras cantadas.
Foi justamente para comprovar cientificamente o valor da canção de Chico que o professor Adriano Dantas de Oliveira, orientado pela professora da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de retórica Lineide do Lago Salvador Mosca, debruçou-se, em uma pesquisa acadêmica de doutorado, sobre o trabalho do autor de obras emblemáticas como Apesar de Você, Cálice (com Gilberto Gil), Meu Caro Amigo (com Francis Hime) e, mais recentemente, Paratodos.
Agora, o público tem acesso aos resultados da pesquisa, realizada entre 2010 e 2014, com o lançamento do livro Retórica e Canção (assinado por ambos os pesquisadores), pela Editora Espaço Acadêmico. Para “ler” a obra de Chico de forma efetiva, o livro toma como base um modelo teórico e interdisciplinar que articula teorias retóricas e semióticas, fundamentado em teóricos clássicos como Aristóteles e Platão, passando por intelectuais modernos como Greimas e Meyer e chegando a autores contemporâneos brasileiros, dentre os quais Luiz Tatit.
Nunca é demais lembrar que o termo retórica, na pesquisa científica, refere-se a um modo de organização de um texto e não tem o sentido negativo que a palavra adquiriu ao longo do tempo. No caso da canção, falar da retórica de Chico equivale a investigar as maneiras pelas quais a obra (o discurso) desse cancionista foi elaborada.
Em 344 páginas, no bojo do panorama histórico, os autores analisam 13 canções com temática sociopolítica, compostas e gravadas durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). Na apresentação, Mosca destaca que esse “quadro sociopolítico constitui não um pano de fundo, mas a própria tessitura do momento, entranhado nas canções do autor, que o expressou intensamente”.
O leitor de Retórica e Canção vai, assim, encontrar interpretações de versos como: “Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão/ A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão, viu” (de Apesar de Você, 1970). Além de: “Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta” (de Cálice, 1973). E ainda: “Num tempo/ Página infeliz da nossa história/ Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações/ Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações” (de Vai Passar, 1984).
Dantas e Mosca demonstram que essas canções desenvolvem uma configuração discursiva que tensiona os valores de liberdade e resistência em contraposição aos valores e às práticas de opressão e repressão difundidos pela ditadura. As análises do livro consideram essencialmente a canção de Chico como uma “situação retórica”: ao mesmo tempo, aborda de maneira singular conteúdos (logos, conceito da retórica) que materializam as relações políticas e sociais do período ditatorial, constrói uma imagem (o ethos do orador, segundo a teoria retórica) do intérprete da canção e suscita paixões (o pathos do auditório, noção também da retórica) nos ouvintes.
Em 2020, época em que se evidencia a pós-verdade, por meio de tramas de fake news, e em um momento em que ressurgem posições repressoras em diversas partes do planeta, o livro é referência importante para todos os interessados em música brasileira e na história política e sociocultural do país, cujos autoritarismos e ideologias foram, de modo único, desvelados na obra cancional de Chico.
Afinal, sabemos que a busca por uma sociedade em que prevaleçam a ética, a justiça e o estado de direito passa pela interpretação dos textos de cultura, no âmbito da qual a canção, pela força e pelo papel adquiridos na história do Brasil, tem estatuto privilegiado.