O terror é um gênero marcante nos quadrinhos brasileiros. Curiosamente, alguns dos maiores expoentes foram estrangeiros que vieram fazer carreira no país, como o argentino Rodolfo Zalla (1931-2016), criador de Nádia, a Filha de Drácula, o italiano Eugenio Colonnese (1929-2008), pai de Mirza, a Mulher-Vampira, e o português Jayme Cortez (1926-1987) – cujo principal personagem foi, na verdade, um super-herói metafísico, o Zodiako. Ao lado do carioca Flavio Colin e do mineiro Mozart Couto, entre outros nomes nacionais, os três formavam a espinha dorsal da revista Mestres do Terror, uma das mais longevas do nosso mercado – Zalla a editou de 1981 a 1993.
Considerado o precursor da primeira onda – desembarcou no Brasil em 1947 – e mentor de autores como Julio Shimamoto e Luiz Ivan Saidenberg, Cortez acaba de ganhar uma celebração. A editora Pipoca & Nanquim reuniu em um único volume toda a sua produção de terror, devidamente restaurada para os padrões gráficos contemporâneos. Fronteiras do Além (132 páginas, R$ 69,90) traz 24 histórias escritas e desenhadas por ele (quase todas em preto e branco), dezenas de capas que fez para revistas como O Terror Negro, Clássicos de Terror e Calafrio, cartazes de filme (tipo Delírios de um Anormal, dirigido e estrelado por José Mojica Marins, o Zé do Caixão), ilustrações, esboços e uma verdadeira aula: cinco páginas em que o próprio autor explica as técnicas narrativas empregadas em sua mais famosa HQ, O Retrato do Mal.
Essa história, em que um velho pintor dedica-se a finalizar a sua "obra máxima" depois de passar a vida "integrado a todos os vícios", teve duas versões, ambas presentes no livro. A primeira, de 1961, tinha apenas três páginas. Em 1973, Cortez fez uma releitura ampliada (oito páginas) e aprimorada – é essa que ele analisa nos extras, em que detalha seu processo de criação. Explica a composição dos quadros, enaltece o papel da iluminação, justifica a presença de elementos como um gato e um rato para a condução da trama e explicita a fusão de estilos gráficos proposta em O Retrato do Mal: as cenas do pintor Jules Gascon remetem ao barroco do gravurista Gustave Doré (1832-1883), e as do Diabo lembram as linhas da art noveau de Alphonse Mucha (1860-1939).
Com projeto e textos do diretor de arte e pesquisador Fabio Moraes (leia entrevista logo abaixo), a obra é riquíssima em material de apoio. Além dos extras coletados junto ao acervo de Cortez, há uma biografia, fotos – em que o mestre aparece ao lado de outros mestres, como os americanos Will Eisner e Stan Lee, ou aquelas que o artista produzia, usando parentes amigos como modelos, para servirem de base a capas – e homenagens assinadas por colegas e pupilos, como Mauricio de Sousa, R.F. Lucchetti e Saidenberg.
Mas, claro, o que sobressaem são as histórias, nas quais percebe-se a influência exercida pelos contos do escritor americano Edgar Allan Poe, de quem Cortez era fã. Algumas HQs, hoje, podem soar ingênuas. Outras parecem repetir soluções – o fatídico encontro com a morte ou o com o demônio. Mas o domínio artístico de Cortez e seu poder de concisão (coisa de uma página muitas vezes) merecem respeito e admiração.
Além de O Retrato do Mal, são antológicas O Imortal e Reencontro. Na primeira, Cortez injeta originalidade ao clichê da imortalidade. Na segunda, sobre uma jovem mãe solteira, o título traz ao mesmo tempo uma pista e um engodo. Vale citar também sua única HQ colorida, Magoou-se, Pobre Filho Meu, uma versão da canção Coração Materno, de Vicente Celestino. Publicada em 1984, foi uma das últimas histórias de Cortez, que morreu em 1987, aos 60 anos, vítima de uma parada cardíaca no hospital onde estava internado por causa de uma hemorragia no abdômen.
"Foi um pai para os quadrinhos brasileiros"
Por e-mail, o diretor de arte e pesquisador Fabio Moraes, autor do projeto e de vários textos do livro Fronteiras do Além, respondeu as seguintes perguntas sobre a obra e o legado de Jayme Cortez:
Na condição de especialista sobre a obra de Jayme Cortez, qual foi a maior contribuição artística dele para os quadrinhos, tanto nas tramas quanto nos desenhos?
O Cortez é um pai dos quadrinhos brasileiros. Foi responsável direto pela formação de inúmeros artistas e inovou ao trazer para nossa terra o método de desenho de modelo vivo que aprendera com seu mestre em Portugal, Eduardo Teixeira Coelho, quando trabalhou em O Mosquito, um importante e famoso periódico português. Cortez também tinha uma incrível produção de capas pintadas para todos os tipos de revistas. Chegava a pintar uma capa por dia, desde os estudos, passando pelo leiaute e até a arte-final. Era extremamente versátil, sua arte ia do infantil ao terror, gênero que o catapultou aos mais altos degraus da fama.
Na arte, ele tinha alguma espécie de marca registrada?
Sua marca registrada era o seu estilo próprio. Nas capas de revista, exibia seu talento para a anatomia, com uma estilização nos moldes clássicos que fazia suas ilustrações brilharem nas bancas. Nos quadrinhos, passeou por diversos estilos e chegou a ser considerado o mestre do preto e branco, devido aos contrastes violentos de claro e escuro em suas HQs de terror.
Cortez foi um autodidata, mas percebe-se, lendo o material de apoio, em que detalha as técnicas narrativas empregadas em O Retrato do Mal, que ele também aprendeu a ensinar. Ai mesmo tempo, sua biografia mostra que sempre foi um incentivador dos autores nacionais e que adorava participar de eventos, congressos e grupos. Você pode dimensionar o papel do português Jayme Cortez para a formação de um mercado brasileiro de quadrinhos?
Sem a participação de Jayme Cortez, os mercados de quadrinhos e ilustração brasileiros não teriam sido metade do que foram. Cortez era um apaixonado pela profissão que abraçou. Foi o fomentador e o primeiro presidente do Clube dos Ilustradores do Brasil e chefiou delegações brasileiras em congressos e eventos de quadrinhos mundo afora. Era respeitadíssimo lá fora, sendo amigo dos maiores do mundo, como Will Eisner, Stan Lee, Burne Hogarth, Salinas, Joe Kubert e tantos outros mestres.
Por que Cortez se afeiçoou tanto ao gênero do terror? Tem a ver com o gosto popular de sua época ou havia motivos mais pessoais também?
Sua grande chance seria na revista O Terror Negro, da La Selva. O gênero estava em alta por aqui, pois os comics de terror haviam sido proibidos nos EUA (nos anos 1950, em consequência da cruzada moralista deflagrada pelo psiquiatra Frederic Wertham, autor do famigerado livro A Sedução dos Inocentes). A demanda por material nacional crescia vertiginosamente, e ele estava no lugar certo, na hora certa. Além disso, ele tinha um vasto conhecimento sobre cinema, e terror era seu gênero predileto. Verter o clima dos filmes de terror do cinema para os quadrinhos e ilustração era para ele um prazer.
Várias das histórias narram encontros com a morte ou com um demônio. Novamente, pergunto: isso era uma marca de seu tempo ou uma obsessão temática?
Acredito que era o que a época pedia. Não só ele, mas inúmeros artistas, principalmente na fase das editoras Outubro e Continental. O terror brasileiro tinha essa característica.
Na sua arte, uma coisa que chama atenção, dados os clichês do gênero, é que ele não apelava para o sexo. Uma ou outra mulher aparece seminua, mas não há conteúdo sexual propriamente dito, nem a constante ameaça de estupro. Há algum motivo em especial para isso? Era uma decisão consciente ou apenas um reflexo de sua formação cultural?
Cortez era europeu, com um senso estético bastante refinado, e não precisava de clichês apelativos para contar uma boa história. Seus desenhos e estudos eróticos ficaram mais como arte particular. Acredito que essa é uma faceta quase desconhecida de sua arte.