Enquanto a venda de livros físicos se mostra impactada pelo coronavírus, o mercado editorial se mobiliza com o lançamento de e-books, usando o formato digital, inclusive, para publicações que respondem ao atual estado de exceção. Pandemia Capital, série da Boitempo Editorial que inclui A Arte da Quarentena para Principiantes, de Christian Dunker, tem como outros destaques os novos ensaios de dois dos maiores filósofos do mundo nas últimas décadas: o esloveno Slavoj Zizek, com Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo, e o italiano Giorgio Agamben, com Reflexões Sobre a Peste.
São reflexões desestabilizadoras, essas, de Agamben. Aos 78 anos, o grande autor encarou a pandemia, primeiramente, com ceticismo e críticas ao que chamou de “histeria midiática”, dedicando-se a seguir a se defender da má repercussão dessas suas impressões iniciais, para, por fim, lançar algumas questões sobre a vida em sociedade pós-impacto do coronavírus. A doença trouxe, com ela, um “desmoronamento de toda convicção e fé comum”, ele aponta, para sentenciar depois: “Seria possível dizer que os homens já não acreditam mais em nada – exceto na nua existência biológica que é preciso salvar a qualquer custo”.
O livro é composto de seis ensaios curtos publicados originalmente entre 26 de fevereiro e 13 de abril no site da editora Quodlibet (em italiano), como espécies de diários da quarentena. Vivendo no país que se tornou o primeiro epicentro da doença no Ocidente, o filósofo acompanhou de perto as primeiras medidas restritivas de impacto para frear a circulação do vírus – adotadas não sem alguma trapalhada preliminar das autoridades, sintetizadas na campanha #MilanoNonSiFerma (“Milão não para”, em tradução literal). Agamben não queria que a cidade parasse, apontando que a imposição do isolamento equivaleria a considerar cada pessoa um possível transmissor da peste, ou seja, “um terrorista em potencial”, o que traria “degeneração das relações sociais” e contaminaria a vida, a partir dali, com um “perene estado de medo e insegurança”.
Nem o aumento crescente do número de mortos o fez mudar de ideia. Mas o raciocínio do autor de Profanações e da série Homo Sacer mostra-se pertinente no que tem de coerente com sua obra pregressa. Agamben está preocupado com a redução do valor das vivências à mera sobrevivência – um passo significativo para que liberdades individuais sejam cerceadas, por exemplo, por governos autoritários. Esse debate, esclarece a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carla Rodrigues no Prefácio, não é médico-científico, e sim filosófico-político. “A gestão da forma das vidas a serem preservadas só existe sob o controle da liberdade. Infelizmente, essa descrição não é a de uma situação de exceção, mas a explicitação do que nem sempre é tão evidente e que escancarou-se com a pandemia: a política não é feita em nome da defesa da vida, bem ao contrário, a defesa da vida é reivindicada como fundamento para a política”, aponta a docente.
O estado de excepcionalidade atual levou essa situação a um dilema – que Agamben não resolve. Genericamente, defender a liberdade pode significar a condenação do autoritarismo político, mas, na pandemia, é igual a defender a morte. O filósofo cai nessa armadilha justamente porque ignora as implicações médico-científicas da questão.
No Brasil, o autor foi refutado por Contardo Calligaris (em texto na Folha de S. Paulo) e pela professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Yara Frateschi, no site da Boitempo. “Faz parecer que Agamben está mais comprometido com sua filosofia do que com o mundo que ela quer explicar”, apontou a última, sugerindo que o autor tenta submeter a realidade aos seus conceitos previamente elaborados. Faz muito sentido. No debate filosófico sobre o atual estado de coisas, vale considerar o livro tanto quanto as suas contestações.