Aconteceu faz poucos dias em um post nas redes da editora divulgando o lançamento do romance Corpos Secos. A mera declinação da sinopse do livro escrito a oito mãos por Luisa Geisler, Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado acionou o gatilho de um comentarista apoiador do atual presidente, que respondeu com uma versão mais longa e indignada daquele meme “E o PT, hein?”.
É uma reação que mostra o quanto, por circunstâncias alheias às próprias vontades dos autores, a obra sobre uma praga zumbi que se espalha como uma epidemia sem possibilidade de tratamento em um país caótico ganha inevitáveis novas ressonâncias pelo momento em que está sendo publicada – mesmo tendo sido escrita e planejada ao longo do último ano e meio.
Em certo sentido, é apropriado que mais essa camada seja agregada, já que Corpos Secos é muitas outras coisas. Para começar, é um esforço conjunto de quatro autores. Livros escritos em dupla não são incomuns, mas em quarteto são raros – uma experiência recente que vêm à memória na literatura brasileira já tem mais de 30 anos: Pega pra Kaputt (1978), de Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo e Edgar Vasques. Como esse exemplo anterior, Corpos Secos também é um exercício de gênero (misto de policial e espionagem, no caso de Kaputt, cruzamento entre ficção científica e horror, no caso deste livro mais recente). É também uma sátira social (como muitas histórias de zumbis alegam ser) e um romance de aventura sem medo de ser uma peça de entretenimento. Que seja também uma profecia involuntária mais ajuda do que atrapalha, sob esse prisma.
Em um futuro próximo, o uso abusivo de agrotóxicos no Brasil leva ao surgimento de um vírus mutante que, além de matar os contaminados, os transforma em cadáveres ambulantes, os “corpos secos” (a palavra “zumbi” não é usada no livro), que continuam transmitindo a infecção: “Corpos secos andando a esmo em matilhas, caçando os poucos sobreviventes, até que seu ciclo de vida se completasse e eles tombassem imóveis. Por fim, estouravam em bolsas de esporos de vida curta em contato com o ar, mas que eram um risco a qualquer um que as aspirasse num raio de 20 metros”.
O que se segue é a cartilha do gênero: desagregação social, saques, chacinas, a incerteza sobre quais hierarquias institucionais ainda existem, o colapso das comunicações. Corpos Secos é narrado por múltiplos pontos de vista, centrado em pessoas comuns tentando não apenas sobreviver mas entender o que está acontecendo. São quatro os focos: Mateus, jovem contaminado que, contrariando as expectativas, não desenvolveu sintomas e, portanto, está sendo guardado em um hospital em São Paulo como esperança de uma cura; Murilo, irmão mais novo de Mateus, que mora com a mãe e o padastro em um quartel em Santa Maria quando a epidemia eclode (um dos primeiros focos é o Rio Grande do Sul); Regina, esposa de um fazendeiro do Mato Grosso que foge acompanhada de um empregado e de duas crianças quando os “secos” invadem a propriedade; e, finalmente, os gêmeos Constância e Conrado, que enveredam pelo litoral tentando atender a uma misteriosa comunicação pelo rádio que conclama todos os sadios a se dirigirem até a Florianópolis, onde supostamente está-se tentando retomar as atividades básicas e um plano de resistência.
Um dos aspectos interessantes de Corpos Secos é a forma como, apesar de ser uma empreitada conjunta com quatro autores que são bem diversos em seus trabalhos solo, há uma unidade de estilo e efeito. Embora se possa adivinhar algumas intervenções pontuais de um ou de outro aqui e ali, a impressão não é de colcha de retalhos. A forma como a narrativa se desenvolve e evolui, lidando com horror e tensão em escalada crescente, também é um dos sólidos alicerces do livro. Há, contudo, pontos estranhos no caminho, como quando personagens parecem agir da mesma forma estúpida que muitos coadjuvantes de filmes de zumbi por necessidade ou conveniência da narrativa.
Centrado na experiência de personagens e não no grande quadro da contaminação, o romance cresce em pequenos momentos de resiliência e humanidade entre um ataque e outro. Os protagonistas não só precisam fugir da peste como têm de enfrentar ao longo do caminho situações que mostram que, mesmo em um quadro de pandemia, há humanos piores do que a praga.
Não admira que tantas ligações com o agora estejam sendo feitas.
Corpos Secos
De Luísa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado. Alfaguara, 192 páginas, R$ 44,90 (R$ 29,90 o e-book). Bate-papo virtual com os autores nesta segunda, às 18h, no Instagram @CompanhiaDasLetras.